Para que serve a utopia?

"A Utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se distanciará dez passos. Quanto mais a procure, menos a encontrarei. Qual sua utilidade, então? A utopia serve para isso, para caminhar!"
Fernando Birri (diretor de cinema)
http://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Minha cara amiga,


Eu entendo a sua preocupação com a possibilidade de Trump ser eleito. Por aqui também tememos que isso aconteça. Mas não se iluda pensando que este tipo de coisa só acontece por aí. Por aqui também temos desses personagens medonhos que nos assustam não apenas por exaltarem torturadores e propagarem ódio, assustam ainda mais porque levam consigo uma legião de fãs que acredita que através do discurso de ódio se construirá uma sociedade melhor. Também não sou capaz de entender a lógica, mas por aqui as coisas estão cada vez mais difíceis de se compreender ultimamente.

Há um tempo atrás, teve um pessoal que quando a presidenta eleita se pronunciava em rede nacional, batia panela. Não sei ainda como isso será relatado nos livros de história no futuro (se houver História, se houverem livros!), mas imagino algo como “A revolta das panelas”. A revolta era contra uma presidenta democraticamente eleita que, de fato, não fazia o melhor dos governos e era merecedora sim de muitas críticas, mas a revolta das panelas foi inflamada por uma mídia parcial que trouxe a muitos a crença de que vivíamos a maior corrupção de todos os tempos, quando na verdade, o que acontecia eram investigações e punições para esses crimes, como nunca antes tínhamos visto. Mas sabe como é, o que os olhos não veem o coração não sente. Juntou a isso o pessoal que, inconformados com a derrota pela 4ª vez consecutiva, absteve-se de agir democraticamente e partiu para o tudo ou nada desde a reeleição da presidenta. Pediram recontagem de votos, apuração da urna eletrônica e como estava tudo certo, buscaram um crime para um impeachment, aceito no final do primeiro ano do seu segundo mandato.

O processo foi longo e desgastante. Tiveram manifestações pró e contra. As manifestações pró eram todas nas cores verde e amarelo e, sob o mote “contra a corrupção”, muitas pessoas vestiram-se com a camiseta “canarinho”, aquela camiseta da seleção brasileira de futebol, da CBF. Essa mesma, da instituição que ficou desgastada por seus crimes de corrupção. Essas manifestações eram uma festa, tinham catraca do metrô liberado (embora muita dessa gente não usasse transporte público no Brasil, só na Europa, porque lá é chique!) tinham champanhe e transmissão ao vivo pelas grandes emissoras de TV o tempo todo.

As manifestações contra o impeachment – e não necessariamente pró-presidenta – tinham muita gente de vermelho, acusada de receberem pão com mortadela, não contavam com transmissão ao vivo, nem metrô liberado, mas vez ou outra tinham participação especial da PM que para “dispersar” a população se usava de bombas de gás lacrimogênio, bala de borracha, cavalaria e esse tipo de cuidado com a população que só uma polícia muito bem preparada sabe usar.

Em meio a toda essa disputa o Ministério Público Federal concluiu que a presidenta não havia cometido crime de responsabilidade, o que até então embasava o pedido de impeachment.

Não adiantou. Em 31 de agosto a presidenta democraticamente eleita foi golpeada. Ela que não aparece em nenhum escândalo de corrupção. Ela que não cometeu crime de responsabilidade.

Assim, assumiu o vice-presidente – esse sim, o crime da presidenta: tê-lo como vice numa aliança abominável – investigado e alvo de muitas das delações premiadas usadas a bom tento contra um único partido. O vice tem sorte de ser de um partido com mais de duas letras. Safou-se.

Não foi golpe. O golpe é. O golpe está sendo.

Desde que assumiu como interino, o vice-presidente já se lançou em direção oposta ao projeto pelo qual foi eleito e, antes mesmo da conclusão do golpe instituiu grupo de trabalho para elaboração de projetos de plano de saúde acessível, em outras palavras, planos de saúde populares e o começo do fim do já tão sofrível SUS; interrompeu bolsas do programa de intercâmbio Ciências sem fronteiras; desmontou programas de alfabetização; retirou a urgência do projeto anticorrupção enviado à Câmera pela então presidenta (não era contra a corrupção?!?, eu disse que por aqui as coisas estão difíceis de entender); está tentando fazer uma reforma trabalhista para “flexibilizar” as relações trabalhistas e agora decidiu reformar o ensino médio. Reforma é quase seu segundo nome.

Eu não sei o que ele entende por reforma, mas o que está acontecendo na prática é o corte de disciplinas nos três anos do Ensino Médio que o faz temer. A escola pública deve ser daqui para a frente um lugar no qual adolescentes aprendam a falar com a eloquência “mesóclica” que lhe faz parecer admirável ao povo das panelas, fazer algumas operações matemáticas e basta. Porque essa coisa de pensar na história, filosofar, pensar socialmente, adquirir senso estético e sensibilidade pela arte e alinhar mente e corpo pela educação física é coisa de comunista, é o que dizem uns e outros. E por aqui há sempre muito medo dos comunistas e, embora, uma terra de cristãos, essa coisa de divisão mais igualitária de bens é considerado algo abominável, mas construímos igrejas novas todos dias – isentas de impostos, lógico.

Além de reforma ele gosta bastante de vendas. Vocês aí agora poderão comprar nosso pré-sal, nossos aquíferos, estradas e aeroportos. Está tudo pronto aqui é só vir pegar, nós não vamos pagar nada – temo. São tempos de temer mesmo.

Ansiosa por nosso encontro em Cuba.





Abraços,

Seguidores