Acho injusto o sistema de cotas. Explico: 87% dos jovens saem do ensino médio público e ficam com a reserva de apenas 50% das vagas nas universidades federais, enquanto que os 13% dos estudantes das escolas privadas têm iguais 50%, ou seja, se há injustiça no sistema, ela ainda está para os egressos das escolas públicas que em parcela gritantemente maior, concorrem à mesma porcentagem de vagas.
Ainda assim, como tem sido corriqueiro, os preconceitos não tardam a vir para quem se sente injustiçado com o sistema e, neste ano, após o resultado do SISU, há duas semanas, não foi diferente.
Estudantes, geralmente de escolas privadas, que se sentem roubados pelos cotistas e ignoram o fato de usufruírem do privilégio de poder arcar com os custos de bons colégios, cursos extracurriculares de línguas, professores particulares, bons livros… Estudantes que têm o privilégio de não se perceberem privilegiados.
Estudantes que são exímios defensores da meritocracia, mas não abrem mão de todos os bens materiais para concorrer de igual para igual com todos os jovens desse Brasil a fora. Ora, se é o esforço individual o responsável pelo ‘sucesso’, por que não ir para a escola pública, abrir mão dos cursos extras, do cursinho a dois mil reais por mês…? O esforço só vale para o pobre e para o negro?
“Ah, mas eu até entendo a cota social, mas cota racial é racismo!” Sério mesmo? E onde estava a denúncia sobre o racismo quando os negros foram proibidos de frequentar as escolas por decreto? Onde estavam as pessoas a gritar contra o racismo quando os negros foram, por política institucionalizada, colocados a mercê da sociedade para que desaparecessem? Onde estavam os contrários às cotas quando, também por política, foram criadas cotas para europeus e asiáticos ocuparem e usufruírem do país? Isto apenas para citar um pouco da história que, sim, tem tudo a ver com o que acontece até hoje neste país.
(Caso não entenda a relação, recomece do capítulo “Capitanias hereditárias” no livro de História).
Além do mais, as cotas foram implementadas pela luta do movimento negro que reivindicou por medidas que corrigissem as diferenças socioeconômicas e culturais causadas pelo legado da escravidão e pela falsa ideia da democracia racial. É dentro deste contexto de luta que surgem as políticas de ação afirmativa. Portanto, não existiriam cotas, não fosse a luta do movimento negro. Sobre o seu amigo negro rico, caso ele tenha frequentado escola privada, ele não concorre dentro do sistema de cotas. Simples assim.
A cota racial é a garantia legítima de que a universidade seja um reflexo da população que compõe nosso Brasil. É a garantia da diversidade cultural. Com isso ganham todos! Ganha a universidade por se abrir para conhecimentos que vão além do circuito eurocêntrico, ganha a sociedade pela possibilidade de ser menos desigual.
Não vou me alongar sobre a falsa ideia de que a universidade vai perder prestígio, ou diminuir a qualidade porque, além de preconceituoso, esse argumento já foi rechaçado pelas pesquisas que demonstram que estudantes cotistas têm rendimento igual ou superior aos não cotistas ao final dos cursos.
“Precisa melhorar a escola pública, não ter cotas!” Sim, a escola pública precisa melhorar. Muito. Ouso dizer que a escola privada também. O sistema educacional precisa mudar e ser melhor. O vestibular precisa mudar. Uma prova nem sempre, para não dizer quase nunca, diz muito sobre conhecimentos e habilidades. Diz mais sobre a habilidade para fazer prova e, neste contexto, podemos estar perdendo gênios que não se adaptam a um modelo ultrapassado. Mas até que as mudanças necessárias aconteçam de fato, continuaremos a dispensar parte de uma geração do ensino superior público?
É, o Brasil precisa avançar. Precisa melhorar a educação básica e expandir ainda mais as vagas no ensino superior público. Fato. Mas precisa avançar ainda mais na empatia e na reflexão sobre a história deste país que pesa principalmente nas costas dos mais pobres. Precisa avançar no reconhecimento dos privilégios.
Mas é também fato que “este país está mudando mesmo” como se surpreendeu Dona Bárbara ao saber que a filha da empregada, Jéssica, prestaria vestibular na Faculdade de Arquitetura da USP, no aclamado filme “Que horas ela volta”. Recomendo.
Sim, este país está mudando mesmo e haverá cada vez mais “Jéssicas” nas universidades públicas deste país. “Fabinhos”, aceitem.
Disponível também em: http://jnovocontexto.com.br/cotas/