Para que serve a utopia?

"A Utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se distanciará dez passos. Quanto mais a procure, menos a encontrarei. Qual sua utilidade, então? A utopia serve para isso, para caminhar!"
Fernando Birri (diretor de cinema)
http://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Cotas?

Acho injusto o sistema de cotas. Explico: 87% dos jovens saem do ensino médio público e ficam com a reserva de apenas 50% das vagas nas universidades federais, enquanto que os 13% dos estudantes das escolas privadas têm iguais 50%, ou seja, se há injustiça no sistema, ela ainda está para os egressos das escolas públicas que em parcela gritantemente maior, concorrem à mesma porcentagem de vagas.
Ainda assim, como tem sido corriqueiro, os preconceitos não tardam a vir para quem se sente injustiçado com o sistema e, neste ano, após o resultado do SISU, há duas semanas, não foi diferente.
Estudantes, geralmente de escolas privadas, que se sentem roubados pelos cotistas e ignoram o fato de usufruírem do privilégio de poder arcar com os custos de bons colégios, cursos extracurriculares de línguas, professores particulares, bons livros… Estudantes que têm o privilégio de não se perceberem privilegiados.
Estudantes que são exímios defensores da meritocracia, mas não abrem mão de todos os bens materiais para concorrer de igual para igual com todos os jovens desse Brasil a fora. Ora, se é o esforço individual o responsável pelo ‘sucesso’, por que não ir para a escola pública, abrir mão dos cursos extras, do cursinho a dois mil reais por mês…? O esforço só vale para o pobre e para o negro?
“Ah, mas eu até entendo a cota social, mas cota racial é racismo!” Sério mesmo? E onde estava a denúncia sobre o racismo quando os negros foram proibidos de frequentar as escolas por decreto? Onde estavam as pessoas a gritar contra o racismo quando os negros foram, por política institucionalizada, colocados a mercê da sociedade para que desaparecessem? Onde estavam os contrários às cotas quando, também por política, foram criadas cotas para europeus e asiáticos ocuparem e usufruírem do país? Isto apenas para citar um pouco da história que, sim, tem tudo a ver com o que acontece até hoje neste país.
(Caso não entenda a relação, recomece do capítulo “Capitanias hereditárias” no livro de História).
Além do mais, as cotas foram implementadas pela luta do movimento negro que reivindicou por medidas que corrigissem as diferenças socioeconômicas e culturais causadas pelo legado da escravidão e pela falsa ideia da democracia racial. É dentro deste contexto de luta que surgem as políticas de ação afirmativa. Portanto, não existiriam cotas, não fosse a luta do movimento negro. Sobre o seu amigo negro rico, caso ele tenha frequentado escola privada, ele não concorre dentro do sistema de cotas. Simples assim.
A cota racial é a garantia legítima de que a universidade seja um reflexo da população que compõe nosso Brasil. É a garantia da diversidade cultural. Com isso ganham todos! Ganha a universidade por se abrir para conhecimentos que vão além do circuito eurocêntrico, ganha a sociedade pela possibilidade de ser menos desigual.
Não vou me alongar sobre a falsa ideia de que a universidade vai perder prestígio, ou diminuir a qualidade porque, além de preconceituoso, esse argumento já foi rechaçado pelas pesquisas que demonstram que estudantes cotistas têm rendimento igual ou superior aos não cotistas ao final dos cursos.
“Precisa melhorar a escola pública, não ter cotas!” Sim, a escola pública precisa melhorar. Muito. Ouso dizer que a escola privada também. O sistema educacional precisa mudar e ser melhor. O vestibular precisa mudar. Uma prova nem sempre, para não dizer quase nunca, diz muito sobre conhecimentos e habilidades. Diz mais sobre a habilidade para fazer prova e, neste contexto, podemos estar perdendo gênios que não se adaptam a um modelo ultrapassado. Mas até que as mudanças necessárias aconteçam de fato, continuaremos a dispensar parte de uma geração do ensino superior público?
É, o Brasil precisa avançar. Precisa melhorar a educação básica e expandir ainda mais as vagas no ensino superior público. Fato. Mas precisa avançar ainda mais na empatia e na reflexão sobre a história deste país que pesa principalmente nas costas dos mais pobres. Precisa avançar no reconhecimento dos privilégios.
Mas é também fato que “este país está mudando mesmo” como se surpreendeu Dona Bárbara ao saber que a filha da empregada, Jéssica, prestaria vestibular na Faculdade de Arquitetura da USP, no aclamado filme “Que horas ela volta”. Recomendo.
Sim, este país está mudando mesmo e haverá cada vez mais “Jéssicas” nas universidades públicas deste país. “Fabinhos”, aceitem.

Disponível também em: http://jnovocontexto.com.br/cotas/

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Volta às aulas

(Quase) sempre gostei da volta às aulas, principalmente pós-férias de verão. Material escolar novinho, o cheiro do lápis de cor na caixa, os cadernos branquinhos prontos para novas histórias serem escritas, os livros com um monte de coisas novas a serem descobertas. A ansiedade para saber quais seriam os professores, reencontrar os colegas e conhecer os novos, muitas histórias novas para contar e ouvir!
Mas para muitas crianças e adolescentes a alegria da descoberta, a ansiedade em descobrir coisas novas e a criatividade são logo minadas pelos rótulos que não tardam em vir. Já vi criança sendo rotulada na primeira semana de aula, após uma ou duas aulas. “Aquele ali ó, pode chamar os pais pra falar que precisa de professor particular, porque ele não acompanha”.
Verdade é que o sistema educacional tal como é organizado exige uma homogeneidade difícil de ser alcançada em turmas de 20, 30, 40 estudantes, e ao mesmo tempo vivemos em uma sociedade que patologiza e medica quem questiona, quem sonha, quem não se encaixa, quem é diferente. Quem é igual, afinal?
Atualmente parecemos viver uma epidemia do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), no entanto, não há consenso no mundo médico se o TDAH é um transtorno biológico-neurológico ou social. Psiquiatras franceses, por exemplo, entendem que o transtorno tem causas psico-sociais e situacionais e, assim, buscam compreender o que está causando o comportamento diferenciado da criança e tratam o contexto social com psicoterapia e aconselhamento familiar ao invés de usar a medicação.
No Brasil, a pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp alerta sobre os riscos do uso da ritalina, medicamento altamente prescrito para crianças, e também adultos, diagnosticadas com TDAH.
É interessante a fala da pediatra, principalmente porque vinda do mundo médico, contraria a tendência estadunidense e brasileira: a medicalização dos problemas que são, de forma geral, sociais e não de ordem biológica, não cabendo, portanto, a medicalização.
A professora diz em entrevista concedida ao site da Unicamp que “Quando se fala em 5% a 10% de pessoas com determinado problema, o conhecimento médico exige que se assuma que isso é um produto social, e não uma doença inata, neurológica, como seria o TDAH, e muito menos genética. Não dá para pensar em porcentagens. Em Medicina, sobre doenças desse tipo fala-se em 1 para 100 mil ou em 1 para 1 milhão. Então, é algo socialmente que vem se produzindo. Quando digo isso, de novo, não estou dizendo que a família é a culpada. Pelo contrário, é um modo de viver que estamos produzindo.”
Maria Aparecida coloca ainda que estão sendo medicadas “as crianças questionadoras (que não se submetem facilmente às regras) e aquelas que sonham, têm fantasias, utopias e que ‘viajam’. Com isso, o que está se abortando? São os questionamentos e as utopias. Só vivemos hoje num mundo diferente de 1.000 anos atrás porque muita gente questionou, sonhou e lutou por um mundo diferente e pelas utopias. Quando impedimos isso quimicamente, segundo a frase de um psiquiatra uruguaio, “a gente corre o risco de estar fazendo um genocídio do futuro”.  Estamos dificultando, senão impedindo, a construção de futuros diferentes e mundos diferentes. E isso é terrível.”
O que estamos fazendo com as nossas crianças? Onde fica a alegria de retornar à escola quando apontamos como problema tudo que nos incomoda como adultos que, muitas vezes, perdemos a capacidade de questionar, de ir contra, de sonhar e, assim acreditar na possibilidade de um mundo melhor?
Que os cadernos branquinhos, os lápis de cor na caixa, os livros novos possibilitem a escrita colorida de uma nova história, com mais perguntas que respostas, afinal, é clichê, eu sei, mas a história mostra que é verdadeiro: não são as respostas que mudam o mundo, são as perguntas.

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