Para que serve a utopia?

"A Utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se distanciará dez passos. Quanto mais a procure, menos a encontrarei. Qual sua utilidade, então? A utopia serve para isso, para caminhar!"
Fernando Birri (diretor de cinema)
http://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8

quarta-feira, 23 de março de 2016

Grelo duro, sin sinhô!

A expressão “grelo duro” utilizada pelo ex presidente Lula em conversa telefônica com Paulo Vannucchi, divulgada pelas mídias ainda tem causado debates e críticas.
A última crítica a que tive acesso foi feita pela deputada Mara Gabrilli do PSDB de São Paulo que em nota repudia a fala considerando-a misógina e desrespeitosa. Engraçado que ela repudia o “grelo duro”, mas não se incomoda em usar “denegrir” por diversas vezes, expressão racista rechaçada pelo povo negro por significar tornar preto. E por que tornar preto é ruim?
Discordo veemente da deputada, mas entendo o seu papel em ser oposição até mesmo em temas que poderiam lhe ser empoderador.
Sim, empoderador. “Grelo duro” como já foi explicado por diversas feministas trata-se de um regionalismo nordestino que quer dizer “mulher porreta”, ou seja, denota uma mulher forte, pronta para o combate, o que faz ainda mais sentido em terras extremamente machista. Penso em mulheres naquelas terras de coronéis que precisam mesmo serem mulheres do grelo duro para enfrentar toda a opressão e violência.
Onde está a misoginia quando Lula chama por mulheres fortes para serem protagonistas de um processo de enfrentamento, seja lá o lado em que você se encontra nesta guerra que se tornou o cenário político brasileiro.
Ora, não teria o mesmo efeito de indignação se Lula tivesse usado “chama os homens pra colocar o pau na mesa!” para defender o governo porque o falocentrismo sempre esteve presente em nossa sociedade com ares de normalidade, a não ser no movimento feminista, sempre descredibilizado por muitas das pessoas que saem agora em defesa das mulheres contra a “fala machista do ex presidente”, conforme esbravejam.
Não acho que Lula seja feminista. De forma alguma. Considero a conversa com Dilma em que ele diz que “ela achou que fosse um presente de Deus” em relação aos policiais federais na casa de Clara Ant machista sim. Mas infelizmente um machismo recorrente que entre amigos e amigas reproduzimos em tom de piada. Cultura essa que precisa ser mesmo mudada, eliminada.
Entretanto, não vi tantos novos feministas quando da acusação de agressão à mulher de Aécio, por exemplo. Mas não quero recorrer ao velho e válido argumento dos dois pesos e duas medidas, porque a situação exige mesmo uma reflexão sobre nossos preconceitos diários.
Para mim, como mulher que enfrenta o machismo diariamente, a misoginia está em quem não quer entender as mulheres de “grelo duro” como o lado forte, em quem não admite que dessa vez não sejam os homens que estejam sendo chamados a pôr o pau na mesa, mas as mulheres de grelo duro! O preconceito está ainda em ignorar e ressignificar contra o feminismo um termo utilizado na região do Brasil que sofre com os achismos de quem advoga em prol de separatismo e/ou acredita que “lá pra cima” é terra de gente preguiçosa.
Considero de extrema má fé, ignorância ou mau caratismo mesmo, gente que sempre acusou as feministas, usarem agora uma fala dita entre amigos para tentar destruir ainda mais a imagem de um líder popular como Lula. De repente tornamo-nos todos paladinos da moral, do feminismo e da idoneidade.
Espero toda essa gritaria contra o fiu fiu diário na rua. Em respeito ao meu corpo, independente do jeito que eu decida apresentá-lo. Na aceitação do meu não como verdade a ser respeitada. No respeito pelo meu lugar de fala, de mulher de grelo duro sim, na luta e no deleite da vida. 

sexta-feira, 18 de março de 2016

EDUCAÇÃO PARA A BARBÁRIE

Meu filho meu maior orgulho... Gui se manifestando em sua aula de artes... Vamos para as ruas domingo, vamos lutar por um país digno para nossas crianças” texto seguido de #forapt #foradilma #vempraruabrasil. Abaixo o desenho, que escolho não reproduzir, de uma criança com os escritos: “Fora bandida; PT fora; morre ‘Diuma’; fora Lula; fora PT; morre Lula”.
Não sei descrever ao certo os sentimentos que me tomam quando vejo essas barbáries explicitadas em tom de politização e sabedoria. Se a barbárie é possível de ser vista exibida com orgulho desde as primeiras manifestações em março do ano passado com cartazes que lamentam não terem morridos todos em 1964, por exemplo, é impossível não se chocar ao ver uma criança sendo exaltada pela reprodução de um discurso de ódio.
Qualquer escola minimamente comprometida com uma educação para uma cidadania crítica e com reflexão social não deixaria passar em silêncio uma “expressão artística” dessas sem um debate sobre política, sobre ódio e sobre direitos humanos.
O nosso discurso adulto torna-se cada vez mais caótico. Perdido. Dizemos às crianças que não pode brigar com o amiguinho, que não pode xingar, que não pode bater (quero acreditar que essa ainda é a máxima utilizada), mas achamos um absurdo uma lei que nos impeça de dar “um tapinha”. Confundimos educação com coerção. Respeito com medo e, por fim, política com paixão. Confusões perigosas essas.
Eliane Brum, colunista que sigo com grande admiração, escreveu nesta semana que a política no Brasil deu lugar à fé em detrimento da razão, tanto para os odiadores de Dilma, Lula e PT, quanto para os adoradores de Lula. Acontece que, na política, mesmo para os crentes, é preciso ser ateu, escreveu ela.
Chegamos ao ponto em que o óbvio tem que ser dito. Não importa se você discorda da linha política de Dilma, Lula, Aécio ou Alckmin. Nada, absolutamente nada, justifica desejar a morte de tais figuras. Além de isso demonstrar o quão raso está o debate político, alerta também para o ódio exaltado com orgulho que, nessa linha, segue para um fascismo que vem tomando espaço disfarçado de combate à corrupção. Qual o nome para o desejo de morte do outro pela sua opção política ou religiosa? Sobre o que foi o holocausto?
Incitar o ódio de crianças deveria ser crime hediondo. Coisa que desejamos quando vemos crianças sendo usadas pelos radicais islâmicos, não?
Como acreditar que o desejo real de quem exalta discurso de ódio quer mesmo “um país digno para nossas crianças”? Digno para quem? Que dignidade pode haver quando o debate político dá lugar ao ódio e à barbárie escrita e proferida em tom de orgulho, dirigida ao outro que pensa diferente?
Em um país que ainda não aceita Direitos Humanos e que apesar de uma maioria cristã, defende o olho por olho, parece excesso de utopia acreditar que a educação sozinha será redentora desse cenário apocalíptico em que nos afundamos.
Buscava acreditar que apesar das ideologias diferentes, no fim todos queríamos todos a mesma coisa: um país melhor; um futuro melhor. Não consigo acreditar nisso quando o ódio toma o lugar do debate racional e coopta as crianças em discursos que não lhe deveriam ser próprios.  

Apesar disso, aceitar que o caminho para uma democracia forte e saudável ainda está a perder de vista entre nós, deve reforçar essa nossa utopia que não é mobilizante, mas serve exatamente para nos fazer caminhar.

sexta-feira, 4 de março de 2016

O som das panelas

Muito me indigna a indignação seletiva sobre os casos de corrupção, a indignação que vira notícia em horário nobre pela mesma mídia [corrupta!] que a causou e ignora o fato da corrupção ser um mal fincado neste país desde a sua invasão pelos europeus.
Enquanto batem panelas que sempre estiveram cheias de bons alimentos, como crianças mimadas que não querem ouvir o que o outro tem a dizer, ignoram as panelas vazias nas escolas públicas estaduais de São Paulo em função de um esquema, já denunciado, de corrupção no contrato com empresas fornecedoras de merenda, mas bem pouco explorado pela sempre tão indignada grande mídia.
Em um país no qual muitas crianças vão à escola primeiramente pela (até então) garantia de receber uma alimentação saudável e nutritiva, esse crime torna-se ainda muito mais odioso. Leandro Karnal, historiador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), expressou no jornal do canal Cultura sua indignação sobre o assunto: “de todos os tipos de canalha, canalha que rouba de aluno pobre de escola pública, este realmente, eu que sou contra a pena de morte, é o único momento em que a minha decisão fica abalada. Realmente é um crime hediondo você lesar crianças e escola. […] Quem está roubando a merenda das crianças de São Paulo?”
Vale lembrar que só faz sentido falar em meritocracia, quando todos têm o mesmo ponto de partida. Quando a diferença já começa por “quem come” e “quem não come”, a meritocracia nada mais é que um discurso ideológico para perpetuar privilégios.
Para além da necessidade de muitas crianças de ter ao menos uma refeição adequada ao dia, soma-se o direito de todas as crianças de receber na escola pública uma alimentação rica e balanceada nutricionalmente.
Qualquer profissional da educação minimamente preparado sabe que ter os aspectos fisiológicos supridos – respiração, alimentação, sono… – é a base essencial para que se possa aprender e, portanto, “roubar comida da boca de crianças” é um ato que impede diretamente a aprendizagem delas. Dentro da luta por educação de qualidade, deve estar atrelada a luta por uma merenda rica nutricionalmente e saborosa, capaz de garantir os recursos mínimos para promover a aprendizagem de todas as crianças.
Assim, a “merenda” é um dos fatos pelo qual eu acredito que valha a pena lutar pela garantia do direito a uma escola pública gratuita e de qualidade. Ao conceber a educação como uma ação muito mais ampla que o mero ensino técnico de habilidades cognitivas, entendo a merenda como um ato educativo à medida que oferece diversidade de alimentos e possibilita o desenvolvimento de hábitos saudáveis de alimentação. Uma merenda nutritiva e saborosa pode ainda evitar o consumo de biscoitos, salgadinhos e refrigerantes que, além de muito calóricos, são pobres em valores nutricionais. Além disso, a alimentação em grupo estimula as crianças a comerem alimentos que, muitas vezes, sozinhas em casa, elas não se permitem experimentar. Pode ainda virar objeto de estudos nas aulas de ciências, história, português, matemática, geografia em projetos interdisciplinares que valoriza uma educação em diálogo com a vida real, e enriquece significativamente a aprendizagem dos estudantes.
No entanto, falta merenda e as escolas se organizam como podem. Já vi até relato com foto de escola servindo farelo de bolo com água.
Apesar do descaso com a educação pública no Estado de São Paulo a que [pouco] assistimos nos noticiários – reorganização forçada, fechamento de salas, falta de merenda… – segue-se batendo panela exclusivamente contra o executivo federal, enquanto isso, nas panelas das escolas públicas estaduais paulistas, silêncio e poeira.

Seguidores