Para que serve a utopia?

"A Utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se distanciará dez passos. Quanto mais a procure, menos a encontrarei. Qual sua utilidade, então? A utopia serve para isso, para caminhar!"
Fernando Birri (diretor de cinema)
http://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8

domingo, 24 de abril de 2016

Escola sem ideologia. Qual?

Está em discussão na Câmara dos Deputados dois Projetos de Leis que vêm sendo conhecidos popularmente como “Escola sem Ideologia” e “Escola sem partido” de autoria dos deputados federais: Rogério Marinho e Izalci Lucas Ferreira respectivamente, ambos do PSDB. Grosso modo, esses dois projetos trabalham com a ideia de uma possível neutralidade na educação.

A pergunta que não me deixo de fazer, e seria importante que todos fizessem, é: qual ideologia? É mesmo possível a tão requerida neutralidade? Ensinar ou aprender que o Brasil foi descoberto por acaso por navegantes experientes que desejavam ir às Índias é parte de uma educação neutra? Um currículo que privilegia ciências exatas em detrimento de ciências humanas é um currículo neutro?

A resposta, espero que óbvia, é não! Tudo e todos estamos carregados de ideologias. Sim, i-de-o-lo-gias. Este termo que parece assustar, mas que nada mais é que o conjunto de nossas vivências, experiências, práticas sociais, crenças etc., ou seja, a nossa percepção de mundo.

A ideia falaciosa de neutralidade é apenas para maquiar que ainda no século XXI vivemos sob o domínio de ideologias retrógradas como a do racismo que carrega, ainda hoje, o mito da democracia racial e ignora os lamentáveis casos de racismo que acontecem cotidianamente em todas as partes do país; a do machismo, que violenta psíquica e fisicamente mulheres em todo o mundo; a da heteronormatividade, que coloca como patológica ou demoníaca as orientações sexuais que se diferem deste padrão; as ideologias religiosas que legislam no nosso estado laico... Enfim, ideologias muitas que constroem nosso mundo tal como é ou, prefiro pensar, está.

O que me assusta quando vejo tais projetos é que não acredito – e torço para estar totalmente equivocada – que a preocupação se volte a essas ideologias dominantes que causam vítimas cotidianamente. Infelizmente o que temos assistido é a uma criminalização das ideologias que rompem com esse padrão predominante. É chamada de professora ideóloga a que fala sobre feminismo, sobre desigualdade social, que luta por direitos iguais sem distinção de gênero, jamais o professor que faz a piada machista ou homofóbica e que fala de mais de 300 anos de escravidão como algo natural e não como uma ideologia da época (da época?). Então, qual ideologia está se querendo evitar que nossas crianças e adolescentes tenham acesso na escola?

O desconhecimento sobre ideologia chegou a tal ponto que pudemos ver nas últimas manifestações cartazes com “Fora Paulo Freire” levantados por pessoas que talvez nunca o tenham lido, mas o rejeitam porque este é um ideólogo. Sim, Paulo Freire está carregado de ideologia. Assim como também estão: Florestan Fernandes e Karl Marx e, na direção oposta, Hitler e Thomas Malthus, apenas para exemplificar. Assim como também o padre ou pastor; o político em que você votou; a novela e o jornal de notícias que assiste, a vida social que te rodeia estão carregados de ideologia, e isto não é demérito, é apenas um fato.

Uma educação pluralista de qualidade deve prezar para que os estudantes tenham acesso a todos os conhecimentos socialmente construídos, carregados das diferentes ideologias, apenas desta forma é possível falar em liberdade de ideias, porque para odiar ou amar Marx ou Adam Smith, por exemplo, é preciso conhecê-los e estudá-los, do contrário apenas está se repetindo acriticamente ideologias alheias.

Por fim, não há escola sem ideologia, o que os projetos citados desejam é manter o domínio de ideologias convenientes à manutenção da sociedade racista, machista e homofóbica que perpetua há mais de 500 anos por aqui, prevendo punição – que pode chegar a prisão de até 3 anos! – aos professores que “ousarem” dizer que há outro lado na moeda.

Publicado originalmente em: Jornal Novo Contexto em 16/11/2015.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

"Comemorar o “dia do índio”?

Luciano Ariabo Kezo estuda letras na UFSCAR e escreveu livro que ajuda a ensinar a língua umutina-balatiponé. Fonte: http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2015/04/indigena-diz-que-19-de-abril-nao-existe-estamos-na-historia-todos-os-dias.html


Na próxima terça-feira, 19 de abril, comemoraremos o “Dia do Índio”. “Comemoraremos” parece uma forma sádica de se referir à data, uma vez que o cenário para os verdadeiros donos dessas terras, é desastroso. Aprovada em 1940, a data foi estabelecida para que o dia fosse dedicado ao estudo da situação indígena nas diversas instituições de ensino.

Entretanto, reproduzimos até hoje a história de que o Brasil foi descoberto, e não invadido, pelos portugueses. Conta-se na história oficial que nessas terras vivia um povo selvagem que aguardava para ser catequizado e ter sua questionável alma atestada. Questionável porque foi apenas em 1537 que o Papa Paulo III decidiu que os indígenas possuíam alma, mas uma alma vazia que, portanto, precisava ser preenchida pela verdade divina que vinha do homem branco civilizado. E assim se consolidou, pela razão colonizadora, amparada na fé cristã, o plano de invasão e saque destas terras, o plano que em nome de Deus matou, escravizou e aculturou.

Ao longo desses 500 anos, apesar da vitória na “Independência ou morte”, seguimos pelo mesmo caminho dos colonizadores, matando e quase dizimando a população indígena que, na verdade, é a real família tradicional brasileira. Em 2010 chegamos ao lamentável patamar de apenas 0,26% de indígena na composição do total da população.

Indígenas foram e são assassinados. Na ditadura militar brasileira, o número de pessoas mortas reconhecido oficialmente é de 434, entretanto, ao menos 8,3 mil indígenas foram assassinados em nome do progresso. E segue-se a matança: dezembro de 2015: uma criança indígena foi assassinada no colo da mãe em Santa Catarina; janeiro de 2016: um indígena teve a cabeça esmagada por 15 chutes e pisões em Belo Horizonte; no Mato Grosso do Sul, pistoleiros têm atacado diariamente os povos Guarani e Kaiowá... Quantos desses fatos você ouviu noticiado?

Além desse cenário de constante ataque e desrespeito a essa minoria que, sendo sociológica, tornou-se também numérica, os povos indígenas encontram todos os tipos de resistência para serem aceitos e inseridos na sociedade com suas especificidades e direitos. Predomina por aqui a ideia de que ao lutar por suas terras, atrasam o desenvolvimento do país, que são preguiçosos, e que se não estiverem nus e com cocar na cabeça, não são mais “índios”.

De fato, “índio” não é a expressão mais adequada a se usar porque esta foi uma denominação utilizada pelos portugueses que acreditavam (?) estar na Índia e por muito tempo chamaram as terras invadidas de Índia Ocidental. Assim, ao se depararem com a população indígena, automaticamente denominaram-na “índios”. Contudo, atualmente tem sido mais aceita a expressão “indígena” que significa “originário da terra”, “nativo”.

Para Luciano Arikabo Kezo, do povo Balatiponé, pelo viés identitário, um “indígena” sempre se identificará a partir do seu povo, assim como nós nos identificamos como brasileiros, por exemplo. E são muitos os povos indígenas no Brasil, cada um com estrutura linguística e cultura próprias. Aikanã; Aikewara; Barasana; Chamacoco; Desana; Enawenê-nawê; Guarani; Ingarikó; Jarawara; Kariri; Munduruku; Nadöb; Panará; Tapajó; Tabajara; Waiwai; Xavante; Xerente são apenas alguns deles.

Diante de toda essa diversidade o que faz a escola, além de ensinar que “pra mim fazer” é jeito de índio falar, propagando a ideia preconceituosa e caluniosa do indígena ignorante, quando o português é, na verdade, sua segunda língua.

Cabe ainda que em 2016, no “Dia do Índio”, a escola, como um aluno cansado de ter que escrever a redação sobre as férias, mas precisa cumprir tabela, prepare uma atividade “artística” reproduzindo e reforçando o estereótipo do índio nu, com cocar na cabeça, sem se preocupar em ser, de fato, o local propulsor dos fatos científicos que desvelam toda a diversidade cultural, linguística, como também a situação atual dos povos indígenas, possibilitando uma visão menos turva da realidade?

Algumas escolas avançaram uma casa e, na data, chamam um indígena para conversar com as crianças. Legal, mas quem discute os direitos de todos os povos denominados genericamente de indígenas? Quem discute sobre o agronegócio, sobre as construções de usinas, sobre os ataques de pistoleiros, sobre o racismo, sobre todas as violências que continuam a matança iniciada em 1500, em nome da “ordem e progresso”, que ignora a humanidade de quem sempre foi dono das terras e hoje precisa lutar para, antes de tudo, permanecer vivo nas mesmas?

Vestir cocar e pintar o rosto não cumpre a tarefa educacional de “comemorar o dia do índio”. Se o objetivo for mesmo comemoração, que seja pelos avanços. Comemoremos o primeiro reitor indígena do Brasil na Universidade Federal de Roraima; a indicação do artista indígena do povo Macuxi, Jaider Esbell, ao Prêmio Pipa de Arte Contemporânea; o ingresso de Indígenas nas universidades federais pelas cotas étnico-raciais; o primeiro indígena, Lennon Ferreira Corezomaé do povo Umutima, a ingressar no mestrado da UFSCAR... Que comece a festa!


Publicado também em Jornal Novo Contexto

domingo, 3 de abril de 2016

Apesar de você

Neste final de semana fui convidada a participar de um novo grupo de whats app. Era o grupo de formandos de 1998 da escola na qual terminei o Ensino Fundamental. No pouco tempo entre o contato inicial e ser inserida no grupo me vi perdida nas centenas de mensagens. Notícias de pessoas que o tempo havia me feito esquecer. Notícias tristes. Notícias alegres. Casamentos. Filhos. Trabalhos. Mudanças. Morte...
Em meio a tantas mensagens, muitas recordações com um tom de saudosismo que eu não conseguia sentir. Senti saber o falecimento de uma colega. Do mais, ficava pensando onde eu estava enquanto aquelas alegrias todas foram compartilhadas. Nessa busca deparei-me com o passado que muitas vezes eu fiz questão de não lembrar: eu pude ver novamente aquela menina de óculos, cabelos crespos compridos sempre presos e gordinha que sempre fora alvo das “piadas e brincadeiras” seguida das risadas dos colegas, nem sempre tão amigos assim.
Deparei-me com o bullying em uma época que o assunto não era discutido como agora. Deparei-me com a vergonha em ser como eu era. Deparei-me com aquela dificuldade em aceitar meu corpo e meu cabelo, ainda sem saber que o que diziam sobre o meu cabelo era racismo.  
Bullying e racismo são duas violências, muitas vezes ignoradas, secundarizadas e até mesmo negadas, que trazem consequências das mais desastrosas à vida de uma criança ou adolescente. Apesar disso, nem sempre têm suas especificidades compreendidas socialmente ou, ainda pior, por professores que deveriam ser agentes do combate a estas violências.
Do senso comum de que “antes a gente brincava e ninguém falava que era bullying”, como se o fato do não falar fizesse com que uma violência não existisse, à ideia de que qualquer violência cometida no ambiente escolar seja bullying, o termo vem se desgastando sem que seja compreendido em sua essência, o que dificulta a busca por ações para eliminá-lo do ambiente escolar.
Um exemplo que costumo usar para explicar o tema são as conhecidas histórias da Turma da Mônica. Muita gente ilustra os xingamentos dos personagens Cebolinha e Cascão como bullying com a personagem Mônica, no entanto, não é o que acontece nesta relação porque a Mônica não se intimida e sempre responde com a violência física. O que acontece nas histórias são dois tipos de violências: verbal e física que como violências devem sem enfrentadas e repudiadas.
O próprio Maurício de Souza na Edição 45 da revista Turma da Mônica Jovem trouxe o tema à tona. Nele a Mônica se expressa afirmando que não sofreu bullying. Ora, o que é bullying então? É uma violência, verbal e/ou física, repetitiva e implicada numa relação de poder em que uma pessoa ou um grupo intimida outra, geralmente, mais vulnerável que não responde as agressões. A vítima, intimidada, na maioria das vezes, tem medo de denunciar e procurar ajuda, o que torna os agressores livres para agirem na sua violência covarde.
Outra forma de violência que acompanha muitas crianças e adolescentes durante a vida escolar é o racismo, violência enquadrada como crime desde 1989. Há diversas pesquisas que apontam o quanto o ambiente escolar é hostil aos estudantes negros. Falta representatividade nos professores, na gestão, nos cartazes, nos brinquedos – bonecas negras ainda não são uma realidade em todas as escolas. O material didático, ainda hoje, repetidamente, apresenta o negro com características negativas, além de apresentar o povo negro apenas pelo viés da escravidão, ignorando a história e cultura de impérios africanos antes do ataque europeu ao continente, apesar de já haver lei que estabeleça a obrigatoriedade de tais conhecimentos no currículo.
Neste cenário, a criança ou adolescente negra se percebe dentro de um sistema que não dialoga com sua ancestralidade, que não valoriza sua história e cultura para além do samba e da feijoada, e ainda está exposta a ter sua identidade subjugada na “piada” racista com o aspecto do seu cabelo e com seus traços físicos.
Hoje, 20 anos depois do Ensino Fundamental, com as feridas cicatrizadas por um tempo que, sinto em dizer, não me deixou saudade, entendo meus caminhos traçados, minhas buscas e meu idealismo dentro da educação. Recupero as lembranças com a crítica necessária para seguir meu caminho.
Caminho não menos difícil que aqueles de 20 anos atrás, porém, com mais determinação. Determinação na minha essência, no meu cabelo cacheado. Determinação na busca pela educação que seja significativa e acolhedora a todas as crianças e adolescentes – negras, pobres, brancas, indígenas, gordas, magras, homossexuais, transexuais, heterossexuais...

Sim, mais uma das minhas utopias, mas que sigo caminhando com alegria e amor que transcendo e declaro sem medo, principalmente em tempos de ódios declarados sem pudor e com orgulho. Amor pela luta que me faz acreditar que amanhã vai ser outro dia. 

Publicada originalmente em: Jornal Novo Contexto    

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