Está em discussão na Câmara dos Deputados dois Projetos de Leis que vêm sendo conhecidos popularmente como “Escola sem Ideologia” e “Escola sem partido” de autoria dos deputados federais: Rogério Marinho e Izalci Lucas Ferreira respectivamente, ambos do PSDB. Grosso modo, esses dois projetos trabalham com a ideia de uma possível neutralidade na educação.
A pergunta que não me deixo de fazer, e seria importante que todos fizessem, é: qual ideologia? É mesmo possível a tão requerida neutralidade? Ensinar ou aprender que o Brasil foi descoberto por acaso por navegantes experientes que desejavam ir às Índias é parte de uma educação neutra? Um currículo que privilegia ciências exatas em detrimento de ciências humanas é um currículo neutro?
A resposta, espero que óbvia, é não! Tudo e todos estamos carregados de ideologias. Sim, i-de-o-lo-gias. Este termo que parece assustar, mas que nada mais é que o conjunto de nossas vivências, experiências, práticas sociais, crenças etc., ou seja, a nossa percepção de mundo.
A ideia falaciosa de neutralidade é apenas para maquiar que ainda no século XXI vivemos sob o domínio de ideologias retrógradas como a do racismo que carrega, ainda hoje, o mito da democracia racial e ignora os lamentáveis casos de racismo que acontecem cotidianamente em todas as partes do país; a do machismo, que violenta psíquica e fisicamente mulheres em todo o mundo; a da heteronormatividade, que coloca como patológica ou demoníaca as orientações sexuais que se diferem deste padrão; as ideologias religiosas que legislam no nosso estado laico... Enfim, ideologias muitas que constroem nosso mundo tal como é ou, prefiro pensar, está.
O que me assusta quando vejo tais projetos é que não acredito – e torço para estar totalmente equivocada – que a preocupação se volte a essas ideologias dominantes que causam vítimas cotidianamente. Infelizmente o que temos assistido é a uma criminalização das ideologias que rompem com esse padrão predominante. É chamada de professora ideóloga a que fala sobre feminismo, sobre desigualdade social, que luta por direitos iguais sem distinção de gênero, jamais o professor que faz a piada machista ou homofóbica e que fala de mais de 300 anos de escravidão como algo natural e não como uma ideologia da época (da época?). Então, qual ideologia está se querendo evitar que nossas crianças e adolescentes tenham acesso na escola?
O desconhecimento sobre ideologia chegou a tal ponto que pudemos ver nas últimas manifestações cartazes com “Fora Paulo Freire” levantados por pessoas que talvez nunca o tenham lido, mas o rejeitam porque este é um ideólogo. Sim, Paulo Freire está carregado de ideologia. Assim como também estão: Florestan Fernandes e Karl Marx e, na direção oposta, Hitler e Thomas Malthus, apenas para exemplificar. Assim como também o padre ou pastor; o político em que você votou; a novela e o jornal de notícias que assiste, a vida social que te rodeia estão carregados de ideologia, e isto não é demérito, é apenas um fato.
Uma educação pluralista de qualidade deve prezar para que os estudantes tenham acesso a todos os conhecimentos socialmente construídos, carregados das diferentes ideologias, apenas desta forma é possível falar em liberdade de ideias, porque para odiar ou amar Marx ou Adam Smith, por exemplo, é preciso conhecê-los e estudá-los, do contrário apenas está se repetindo acriticamente ideologias alheias.
Por fim, não há escola sem ideologia, o que os projetos citados desejam é manter o domínio de ideologias convenientes à manutenção da sociedade racista, machista e homofóbica que perpetua há mais de 500 anos por aqui, prevendo punição – que pode chegar a prisão de até 3 anos! – aos professores que “ousarem” dizer que há outro lado na moeda.
Publicado originalmente em: Jornal Novo Contexto em 16/11/2015.