Para que serve a utopia?

"A Utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se distanciará dez passos. Quanto mais a procure, menos a encontrarei. Qual sua utilidade, então? A utopia serve para isso, para caminhar!"
Fernando Birri (diretor de cinema)
http://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8

domingo, 3 de abril de 2016

Apesar de você

Neste final de semana fui convidada a participar de um novo grupo de whats app. Era o grupo de formandos de 1998 da escola na qual terminei o Ensino Fundamental. No pouco tempo entre o contato inicial e ser inserida no grupo me vi perdida nas centenas de mensagens. Notícias de pessoas que o tempo havia me feito esquecer. Notícias tristes. Notícias alegres. Casamentos. Filhos. Trabalhos. Mudanças. Morte...
Em meio a tantas mensagens, muitas recordações com um tom de saudosismo que eu não conseguia sentir. Senti saber o falecimento de uma colega. Do mais, ficava pensando onde eu estava enquanto aquelas alegrias todas foram compartilhadas. Nessa busca deparei-me com o passado que muitas vezes eu fiz questão de não lembrar: eu pude ver novamente aquela menina de óculos, cabelos crespos compridos sempre presos e gordinha que sempre fora alvo das “piadas e brincadeiras” seguida das risadas dos colegas, nem sempre tão amigos assim.
Deparei-me com o bullying em uma época que o assunto não era discutido como agora. Deparei-me com a vergonha em ser como eu era. Deparei-me com aquela dificuldade em aceitar meu corpo e meu cabelo, ainda sem saber que o que diziam sobre o meu cabelo era racismo.  
Bullying e racismo são duas violências, muitas vezes ignoradas, secundarizadas e até mesmo negadas, que trazem consequências das mais desastrosas à vida de uma criança ou adolescente. Apesar disso, nem sempre têm suas especificidades compreendidas socialmente ou, ainda pior, por professores que deveriam ser agentes do combate a estas violências.
Do senso comum de que “antes a gente brincava e ninguém falava que era bullying”, como se o fato do não falar fizesse com que uma violência não existisse, à ideia de que qualquer violência cometida no ambiente escolar seja bullying, o termo vem se desgastando sem que seja compreendido em sua essência, o que dificulta a busca por ações para eliminá-lo do ambiente escolar.
Um exemplo que costumo usar para explicar o tema são as conhecidas histórias da Turma da Mônica. Muita gente ilustra os xingamentos dos personagens Cebolinha e Cascão como bullying com a personagem Mônica, no entanto, não é o que acontece nesta relação porque a Mônica não se intimida e sempre responde com a violência física. O que acontece nas histórias são dois tipos de violências: verbal e física que como violências devem sem enfrentadas e repudiadas.
O próprio Maurício de Souza na Edição 45 da revista Turma da Mônica Jovem trouxe o tema à tona. Nele a Mônica se expressa afirmando que não sofreu bullying. Ora, o que é bullying então? É uma violência, verbal e/ou física, repetitiva e implicada numa relação de poder em que uma pessoa ou um grupo intimida outra, geralmente, mais vulnerável que não responde as agressões. A vítima, intimidada, na maioria das vezes, tem medo de denunciar e procurar ajuda, o que torna os agressores livres para agirem na sua violência covarde.
Outra forma de violência que acompanha muitas crianças e adolescentes durante a vida escolar é o racismo, violência enquadrada como crime desde 1989. Há diversas pesquisas que apontam o quanto o ambiente escolar é hostil aos estudantes negros. Falta representatividade nos professores, na gestão, nos cartazes, nos brinquedos – bonecas negras ainda não são uma realidade em todas as escolas. O material didático, ainda hoje, repetidamente, apresenta o negro com características negativas, além de apresentar o povo negro apenas pelo viés da escravidão, ignorando a história e cultura de impérios africanos antes do ataque europeu ao continente, apesar de já haver lei que estabeleça a obrigatoriedade de tais conhecimentos no currículo.
Neste cenário, a criança ou adolescente negra se percebe dentro de um sistema que não dialoga com sua ancestralidade, que não valoriza sua história e cultura para além do samba e da feijoada, e ainda está exposta a ter sua identidade subjugada na “piada” racista com o aspecto do seu cabelo e com seus traços físicos.
Hoje, 20 anos depois do Ensino Fundamental, com as feridas cicatrizadas por um tempo que, sinto em dizer, não me deixou saudade, entendo meus caminhos traçados, minhas buscas e meu idealismo dentro da educação. Recupero as lembranças com a crítica necessária para seguir meu caminho.
Caminho não menos difícil que aqueles de 20 anos atrás, porém, com mais determinação. Determinação na minha essência, no meu cabelo cacheado. Determinação na busca pela educação que seja significativa e acolhedora a todas as crianças e adolescentes – negras, pobres, brancas, indígenas, gordas, magras, homossexuais, transexuais, heterossexuais...

Sim, mais uma das minhas utopias, mas que sigo caminhando com alegria e amor que transcendo e declaro sem medo, principalmente em tempos de ódios declarados sem pudor e com orgulho. Amor pela luta que me faz acreditar que amanhã vai ser outro dia. 

Publicada originalmente em: Jornal Novo Contexto    

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