Para que serve a utopia?

"A Utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se distanciará dez passos. Quanto mais a procure, menos a encontrarei. Qual sua utilidade, então? A utopia serve para isso, para caminhar!"
Fernando Birri (diretor de cinema)
http://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8

sábado, 29 de julho de 2017

Meu pai preto, meu privilégio branco


Diferente de muita gente, eu me descobri branca. Desde que me conheço por gente eu me declarava como parda. Isso porque lá nos idos da minha 2ª série do então primário eu aprendi aquelas equações raciais: preto + branco = pardo ou mulato (expressão que bem mais tarde fui descobrir o horror que carrega!). Meu pai é preto, minha mãe é branca, sou parda, defini. E assim foi até quase os quase 30, quando me disseram branca de forma mais enfática.

À época eu não tinha a menor aproximação acadêmica com as questões raciais, mas o mundo racializado, queiramos ou não falar de raça, sempre fez parte da minha vida. Era comum ouvir na infância do lado branco da família expressões racistas, muitas vezes em forma de piadinha e as vezes direcionadas ao meu pai, “mas era só jeito de dizer”, era o que eu ouvia também, afinal, no Brasil, ninguém é racista, embora saibamos haver racismo, não é mesmo?

Como o racismo carrega consigo quase que imbricadamente a questão de classe, ao ir para o Ensino médio em uma escola particular, e aí está o meu primeiro grande privilégio branco, ainda que sendo bolsista, diferente da escola anterior, eu era a menina mais próxima de negra na sala. Ainda assim, reconheço meu privilégio porque, embora meus pais suassem muito pra pagar a escola particular, tinham famílias suando muito pra conseguir se alimentar, pra não morrer de fome. Realidade que faz parte da geração dos meus pais, não da minha. Mas junto com o privilégio branco, vem a realidade te mostrar que você não faz parte, de fato, daquele mundo: era comum um professor humilhar os alunos dizendo que tinham “letra de pedreiro”. Até que um dia eu falei, meu pai é pedreiro, professor, ao que ele me respondeu: seu pai não é pedreiro, Mirian, ele deve no mínimo ser mestre de obras ou você não estaria nessa escola. Calei.

Não me declarava parda porque “estava na moda ser preto”, até porque essa ““moda”” é recente, fruto da luta do movimento negro que teve que gritar por séculos para começar a ser ouvido e ter suas pautas valorizadas. Mas há mais de vinte anos, quando era criança, o racismo era mais explícito e desavergonhado. Ninguém jamais questionou ou repreendeu o racismo de quem me zoava por causa do meu “cabelo ruim”, do qual “miojo” foi o apelido mais “carinhoso” que recebi nos anos escolares. “Você nunca pensou em alisar?” era a frase me dita, vinha antes de um oi, muitas vezes.

E fora o fato do meu pai ser pedreiro e ter sido assassinado justamente quando estava erguendo o muro de uma casa de praia de um amigo – branco – que temia a segurança, em um assalto à casa que terminou mal, o racismo estrutural praticamente não me afetou. Até porque isso, dirão os mais perversos, não teve nada a ver com raça, seria do mesmo jeito se meu pai fosse um bancário engravatado. É que ele não era. Era pedreiro, como muitos homens pretos são. “Coisas do acaso”.

Talvez o fato de eu me descobrir branca tenha a ver exatamente com o distanciamento acadêmico que tinha das questões raciais. Porque eu não me autodeclarava parda por uma questão política, como faço agora, mas por uma equação desastrosa ensinada às crianças e que representa a perversa política de embranquecimento, utilizada para “acabar com o mal negro” do Brasil, política da qual eu sou resultado.

Sou tão resultado que é o lugar em que muitos querem me colocar, e eu não deveria me incomodar, afinal, ser branca é ter privilégios, questão que não nego e nem poderia a não ser com muita desonestidade. Porque eu sei que muito provavelmente jamais serei seguida numa loja do shopping; e os meus cachos, embora tenha levado muito tempo a gostar deles, são vistos como “cabelinho de anjo” pelos mais dóceis.

Tenho ainda um referencial branco que é simplesmente extraordinário, a quem só posso sentir orgulho: minha mãe, mulher guerreira, que enfrentou todas as perversidades que a vida colocou em seu caminho com uma força e doçura que fazem dela meu exemplo a seguir na busca de ser um pouquinho melhor por dia.

Apesar disso, não consigo me declarar branca e negar uma parte do que sou. Como poderia me declarar branca com o rosto do meu pai preto estampado em todas as minhas recordações? Eu não deveria mesmo me incomodar de negarem a minha paternidade porque meu fenótipo é claro? Não deveria me incomodar em ter apagada da minha história tudo o que meu pai representa na minha vida?
Meu pai, eu e a Pepita

Meu pai, minha mãe, o padre e eu na minha 1ª comunhão


A minha escolha em não me declarar branca é política, é porque não comungo com a política de embranquecimento iniciada no século XIX e que, ainda que de forma silenciosa se perpetua até os dias atuais. Porque não vou negar minha ancestralidade. Mas nem por isso, vou deixar de enxergar os privilégios que tive e tenho, nem deixar de estar vigilante com a irmã negra mais retinta que, com certeza, foi e é vítima de um racismo que eu tenho o privilégio de desconhecer.

Sei que não estou sozinha nessa, encontrar outros relatos, como da Aline Dias, ajuda-me nessa busca de encontrar meu lugar nesse mundo e fazer parte dessa batalha diária que é a luta contra o racismo, sem com isso, tirar o lugar de ninguém. Eu estou aqui pra somar, não pra subtrair. 

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