De repente, era tudo novo de novo. O sorriso no rosto não deixava esconder a alegria em estar de volta ao chão da escola e agora, na escola que mais acreditava - a escola pública. Finalmente eu havia chegado exatamente onde devia estar...
Foi assim que no dia 15 de março minha vida girou 180º e passei a ser novamente a Professora Mirian! Como gosto de ouvir isso... Não sei se por ego, vocação (coisa q não acredito) ou por carência, mas adoro o som: "Professora Mirian".
Mas nem tudo são sorrisos e músicas para o ouvido na escola, seja ela pública ou privada. Recomeçar, após 4 anos longe da sala de aula foi uma loucura: mudança de rotina, novos desafios, de todos os tipos, e a cabeça a mil pensando em como cativar, como conquistar, como ensinar português, matemática, ciências, história e geografia de forma significativa... O que é significativo para crianças de 9, 10, 11, 12 anos com realidades tão distantes da que eu vivencio?
Como alfabetizar o menino que há pouco tempo voltou a escutar e não descuidar das outras 27 crianças com diferentes necessidades? Como lidar com a criança que agride a mim, aos colegas e à gestão de forma física e verbal, sabendo que é uma sobrevivente num território de abandono, violências e pobrezas (de todos os tipos)... Dá nó na cabeça e, pior, no coração.
Sempre "militei", bem entre aspas mesmo, porque nunca me considerei uma militante como acredito que se precisa ser, pelas causas sociais, mas sou aquela militante de internet, que lê, escreve e posta muito no facebook lamentando as desigualdades todas que assolam a sociedade dentro desse capitalismo selvagem...
Mas agora, cá estou, de frente com a realidade sobre a qual li e escrevi muitas e muitas vezes. Da qual já me exaltei em discussões acaloradas com quem não consegue perceber a realidade para além do próprio umbigo classe média. A percepção do tamanho da impotência sobre estruturas que oprimem me revelaram uma humanidade avassaladora que chega a doer de tão humana.
Revisitei tanta coisa em mim, da minha formação, das experiências passadas e foi um choque me perceber mais tradicional e conteudista do que imaginava e, então, busco me reconstruir, sem perder o que importa, mas sempre questionando muito sobre o que realmente importa... tenho me atentado à importância da liberdade das crianças, da não vigilância como controle, dos corpos livres, do brincar. A escola pública está me sendo a melhor escola para a busca de uma educação, de fato, libertadora, mas não tem sido nada fácil... . Esse exercício é ora prazeroso, ora bastante doloroso... Difícil romper barreiras tão bem alicerçadas, que a gente descobre não servir pra muita coisa, além do controle... mas tenho seguido tentando, aprendendo mais que ensinando, errando e acertando...
Foi essa realidade que me fez ver, na prática, a importância do capital cultural para o desenvolvimento integral da criança. A escola, sem uma reforma tributária, sem reforma agrária e com essa desigualdade social escandalosa que assola o país não será a salvação das crianças, como insistem em romantizar alguns, uma vez que a escola sozinha não dá conta de acabar com a opressão, com a miséria, com a violência vivenciada por tantos estudantes nas 19 horas em que não estão na escola. E digo isso de um lugar de privilégio: não posso reclamar do meu salário e benefícios. A sala de aula onde atuo - e todas na escola - tem notebook, data show e rádio. As crianças almoçam ao chegar na escola e tomam lanche no meio do período. Trabalho com professores muito bem qualificados, com formações sólidas, muitos com pós-graduações, mestrados e doutorados e engajados em promover uma educação significativa. Trocamos experiências, ideias e reflexões. Reflexões que nos levam a entender que a escola pode sim ser um instrumento poderoso de mudança social, mas apenas um, diante da necessidade de tantos outros.
Já passei por três escolas particulares. Em nenhuma tive condições de trabalho como as que tenho agora - do salário às condições concretas em sala de aula. Enquanto minhas condições materiais de trabalho mudaram para melhor, inversamente, a condição socioeconômica das crianças são, geralmente, inferiores à das crianças das escolas particulares. Assim, chega-se a óbvia constatação: é a realidade a que são submetidas as crianças nas 19 horas que estão fora da escola que impactam significativamente seu desempenho escolar, não o contrário.
Assim, compreendi que lutar pela educação só faz sentido se lutarmos por igualdade socioeconômica. Sabe por que a Finlândia é o sucesso que é na educação? Porque lá não tem criança passando fome. As crianças lá vão à escola para estudar, não para, primeiramente, comer, como muitas aqui. Nos EUA, onde a desigualdade também persiste, a educação tem seus graves problemas também. Não adianta frases e discursos sobre o poder transformador da educação se nada for feito nessa sociedade que acredita que riqueza e pobreza estão atreladas à meritocracia. A educação só será democraticamente transformadora quando comer e morar dignamente deixar de ser privilégio, todo o resto é demagogia.
Apesar disso, continuo com Paulo Freire para quem a educação não muda o mundo, a educação muda as pessoas. Apesar de tantos reveses, é isso que estou tentando fazer: mudar pessoas.