Para que serve a utopia?

"A Utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se distanciará dez passos. Quanto mais a procure, menos a encontrarei. Qual sua utilidade, então? A utopia serve para isso, para caminhar!"
Fernando Birri (diretor de cinema)
http://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Escrever...?

 Decidi voltar a escrever, mas entre as caraminholas que vagam pela minha mente confusa, vaga também a pergunta: escrever sobre o quê? 

O que de fato importa ser eternizado em folhas com amontados de letras que formam palavras, frases, conexões...? O que de fato importa num mundo que elege Bolsonaro e Trump? Que acusa de assassina uma criança de 10 anos vítimas de abuso desde os 6 de idade? Num mundo que desde a Idade Média, quicá antes, se mata em nome de um Deus que eu, há tempos, decidi me afastar? O que importa? E, se importa, importa a quem?

Escrever sobre as descobertas de uma ansiedade que não me dá trégua e que me deixa sempre a postos para ter uma notícia ruim. E mesmo assim, quando ela chega, eu ainda desabo? Escrever que eu descobri que não é normal uma mente dinâmica 24 horas por dia. Que revelar as ideias recém-paridas da minha mente pode deixar as pessoas estupefatas? 

Escrever sobre como eu queria ser famosa,ser uma grande artista, mas me realizo em frente a crianças e que sinto um prazer enorme ao ouvir "professora" dirigido a mim? Escrever que apesar de entender que não, a educação sozinha não salvará o mundo, a escola ainda pode ser um refúgio para crianças que o mundo desde tão cedo insiste em mostrar a crueldade de um capitalismo selvagem neste mundo de asfalto e sem coração? 

Escrever que, de fato, um coração partido dói mais que joelho ralado, mas que a gente vai cuidando com vinhos, chás, amigues, e plantas em vasos de cimento? 

Escrever que o amor romântico é mesmo uma invenção social e nessa invenção a gente vai tentando inventar tudo: inventar o que achamos que o outro é, até que a invenção não se sustenta diante da realidade? 

Escrever. Talvez seja só pra deixar marcas no tempo. Eu, que descobri também, que gosto de marcas. Cicatrizes. Porque é clichê, mas elas contam sobre o que suportei, não sem dor ou drama, mas viva. 

terça-feira, 25 de agosto de 2020

The purge, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência (?)

 (contém spoilers!)

Já havia lido a sinopse do filme 'n' vezes, mas me parecia um filme superficial sobre violência gratuita. Ledo engano. O(s) filme(s) - já são 5, mais seriado com 2 temporadas disponíveis na Amazon prime - relatam uma noite em que se pode cometer crimes, até mesmo homicídio, legalmente, ou seja, sem ônus algum com a justiça. A isso chamam de expurgo. A ideia divulgada é que "expurgando" a raiva em uma noite, a sociedade se beneficia com baixos índices de violência nos restantes dos dias, já que se expurgou o mal num dia e horário reservados para isso. 

Ba-le-la. 

Ao passar dos filmes (comecei com o 1°, de 2013 e segui com o de 2016 e 2018) vai ficando mais evidente, até se tornar verbalizado que tudo é um plano político de Estado para matar a população pobre e periférica e, de tal modo, reduzir os gastos sociais. 

Desde o primeiro filme, de 2013, - o mais fraquinho - , já é possível perceber interesses políticos e econômicos ao se notar o discurso sobre quem "pode" e quem não pode morrer e quem pode bancar um sistema de segurança para a noite do expurgo. Mas é no filme de 2018, o qual mostra a primeira noite de expurgo, que é revelado o plano político de extermínio por trás da ideia do "expurgo". 

Sim, o filme é banhado de sangue e violência, mas o que impressiona mesmo, aos mais atentos, pelo menos, é a possibilidade de analogia com a realidade de políticas defendidas por trump e bolsonaro. Ambos defendem o armamento da população (rica), e ambos defendem um estado que mata pretos e pobres nas periferias, tal qual ocorre no filme. A diferença - por enquanto - é que o expurgo, da forma como é retratado no filme, não é permitido legalmente. Apesar disso, no entanto, na realidade, o expurgo não tem dia nem hora pra começar ou acabar.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Olhar o passado e saber quem sou no presente...


Revisitei a Tese que finalizei já há mais de um ano e, passado tanto e tão pouco tempo - o tempo é sempre relativo! - eu gostei de revisitá-la e ver os agradecimentos e dedicatória que estão lá. Fora o cumprimento burocrático de ter que agradecer a CAPES - e não é que eu não seja grata, é que ainda acredito no financiamento de pesquisa como essencial e o pagamento de pesquisadores, de quaisquer níveis, como resultado de civilidade e nada mais, assim como deve-se remunerar todo e qualquer trabalhador ou trabalhadora - assim, exceto pelo primeiro parágrafo, gosto de pensar na perenidade desses agradecimentos. 
A tese é datada. O trabalho logo poderá ser tornar ultrapassado, mas o carinho e gratidão que sinto pelas pessoas citadas seguem moldando a mim, as minhas crenças e utopias... 


AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, a quem agradeço pela possibilidade de dedicação exclusiva durante três anos desta pesquisa. 
Agradeço aos trabalhadores e às trabalhadoras do Estado de São Paulo que, ainda que sem saber, financiam as universidades públicas do Estado e, de tal modo, possibilitaram que eu cursasse graduação, mestrado e doutorado, desfrutando de um privilégio que, infelizmente, ainda é para poucos neste país. 
Agradeço à minha família, em especial ao meu pai (in memoriam) e à minha mãe, amiga e conselheira, que nutre uma confiança inabalável em mim e na vida e, assim, inspira-me a seguir sempre em frente, apesar das pedras do caminho. 
Às minhas amigas, umas de longa data, outras que a vida me presenteou ao longo deste trabalho. Amigas com quem troquei medos, angústias e as alegrias desse processo que é escrever uma tese. Correndo o risco de ser injusta cito algumas a quem a presença está também nas linhas aqui escritas: Angélica; Marina; Tamires, Alessandra, Nádia e Jordana: amigas com quem divido a utopia de dias melhores em que a justiça social seja uma realidade e não mais algo pelo que se lutar. 
Aos colegas da EMEF Padre Emílio Miotti que me acolheram, ensinaram e travam comigo diariamente a batalha por uma educação pública, laica, gratuita e de qualidade. Em especial ao Professor Daniel e à Gilmara, pela amizade e companheirismo. 
Às funcionárias da secretaria da Pós-Graduação, sempre atentas e atenciosas em ajudar nos processos burocráticos e resolver problemas. 
Às funcionárias e funcionários terceirizados, muitas vezes invisíveis, mas que realizam o trabalho que torna possível todos os demais trabalhos. 
Aos integrantes dos coletivos pesquisados, em especial aos respondentes dos questionários e entrevistas, pela contribuição que possibilitou esta pesquisa. 
Por fim, agradeço imensamente à Professora Débora Mazza que me acolheu no momento mais difícil dessa caminhada, acreditando em mim e neste trabalho, quando eu mesma já tinha desacreditado. 
A vocês, meu mais sincero, muito obrigada!




DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos movimentos sociais que lutaram e ainda lutam por direitos. 
Aos Movimentos Negros que nos revelam a verdadeira história por trás de heróis que carregam sangue negro e indígena nas mãos. 
Aos indígenas que resistem e que nos ensinam outras lógicas de existência e resistência. 
Aos movimentos feministas que me mostraram que lugar de mulher é onde ela quiser. 
Ao MST que ainda precisa lutar pelo direito à terra para produzir alimentos livres dos venenos do agronegócio. 
Aos trabalhadores e às trabalhadoras deste país que lutam cotidianamente para viver e sobreviver, mas ainda assim acreditam em dias melhores.

domingo, 27 de janeiro de 2019

Estou a 2 passos...

e não é do paraíso... A dois dias de defender o doutorado. Foram quase 5 anos e entre estudos e arrumações dos arquivos acumulados ao longo desse tempo encontro pérolas como essa carta a duas pessoas que são parte fundamental desse processo todo que é "doutorar."...
A carta foi escrita em 5 de dezembro de 2016. O lugar era Praia, Cabo Verde, África!!! De lá para cá já são mais de 2 anos e muitas mudanças também... Muitas! 


“estranho seria se eu não me apaixonasse por vocês...”

É difícil escrever para duas das pessoas que me fazem lembrar que talvez exista um Deus e que apesar dos meus melodramas classe média sofre, Ele na verdade, na possibilidade de ser, é bem legal comigo ao colocar pessoinhas pra cruzar o meu caminho nesse jogo sádico que as religiões nos contam sobre um Deus que existe pra controlar tudo que acontece no mundo.
Lembro com carinho de vocês. Falo de vocês. Os cearenses já conhecem vocês. Eles sabem que a Angel é foda e uma artista do caralho e com quem eu tive uma sintonia instantânea. Que a Marina é a engenheira mais humanoide que existe, escreve bem pra caralho, e que está fazendo um mochilão pela América do sul. Sabem que vocês são o melhor que me aconteceu no doutorado e que, “””””””só””””””” por isso, valeu a pena estar nesse rito acadêmico que eu ainda não sei muito bem como vou fazer, e pra que serve... mas que me sinto na responsabilidade de encontrar um caminho e que, no fim, isso possa minimamente contribuir com esse mundo bizarro de egos científicos e sensos comuns que dialogam na busca egocêntrica por “ser alguém na vida”. Não sei ainda se isso é possível e, se conseguir alcançar uma possibilidade nesse caminho, talvez já me sinta realizada.
Por aqui as coisas vão bem... Acho que tive uma queda emocional nos últimos dias e fiquei meio bodiada. Foi o celular que pifou. Depois a viagem pra Tarrafal, que foi boa, mas me senti muito sozinha, mesmo com os meninos. E sobre o Henrique... Ele é egocêntrico e hiperativo, não sabe se comportar muito nos lugares, rs, mas tem um coração bom e quando entramos no mar, encontramos de novo uma sintonia e sinto que ele tem um cuidado comigo e quer me mostrar as coisas bonitas que já viu. Aqui tenho nadado muito até o fundo, o mar aqui é calmo, parece que quer sempre nos agradar com águas claras e como há mtas pedras, vemos muitos peixes e bichos estranhos do mar (eu trouxe óculos de natação e ele tem snorkel e pés de pato)... Têm sido momentos lindos esse contato com o mar e sua “população” rs. O Ricardo, o outro cearense, é uma pessoa incrível, calmo, sensato, inteligente. Tem 26 anos e já está qualificado no doutorado. É humilde e veio de uma família simples do Ceará. Gosto muito de conversar com ele, e viramos bons amigos. Já saímos algumas vezes só os dois porque o Henrique surta, toma ritalina e fica numas nóias de escrever artigo...
Tarrafal tem uma praia linda. É uma cidade que de longe lembra Paraty, mas 378 vezes mais calma. Fomos na sexta pela manhã e voltamos sábado a tardinha... Chegando em casa eu tive um surto nervoso que agora eu estou até com vergonha.  [censurado!]   A professora Gertrudes veio até aqui, e eu estava nervosa, quase chorando, brava... mas era tudo sintoma de um bodezinho de quem se sentia sozinha e só queria tomar um banho e ficar quietinha, sabe.... É intercâmbio é uma delícia, mas também tem essa coisa de solidão que bate forte no peito... e tinha um churrasco na casa do cara q eu pedi ajuda e os caras ficavam me chamando pra comer, tomar cerveja, pra eu ñ ficar nervosa, pra eu me acalmar e eu só tinha vontade de mandá-los a merda... rs.... Depois me arrependi pq tinha um ex-professor da universidade aqui q era bonitinho... Enfim, logo a mulher chegou e eu entrei em casa e o bote foi passando...
Ela é bem legal. Conversamos bastante e hoje ela me contou que é adotada. O pai era militar. Trabalhou na ditadura. Ela só descobriu que era adotada aos 20 anos. Descobriu na busca que nasceu de uma militante presa na ditadura, na cadeia. Q a certidão de nascimento era falsa. Ou seja, o pai, milico, pegou ela da mãe biológica e fez uma falsa adoção... Eu jamais imaginei que saberia uma história dessas de alguém com quem eu estava tomando café da manhã de pijama num domingo de sol.... Agora ela procura pelo pai que a mãe biológica ñ quer contar quem é. Sim, ela encontrou a mãe, mas os pais adotivos não sabem. O pai adotivo já morreu....
Ao mesmo tempo, ela me fez surtar com a tese. Falou mal do Boaventura de S. Santos. Me fez pensar várias coisas e me sinto de novo na estaca zero, mas apesar disso, acho que ela pode me ajudar. Boaventura é um português, homem, hétero que quer falar dos países colonizados do sul. Em síntese, ele faz a laranjada, mas a laranja é nossa. Seria paradoxal eu falar do epistemicídio usando o referencial, de novo, de um europeu que nos tira o lugar de fala, e como eu não pensei nisso antes, gente?!?!?!?!?!?!?!?!!!! Tô em surto com a tese, me sentindo estúpida e incapaz.... ela me convidou pra participar das reuniões do CLE e me parece ser uma possibilidade interessante, mas me sinto burra pra esse grupo... rs... Quero abrir um quiosque e vender cerveja na praia aqui, já que eles ainda não se atentaram pra esse nicho de mercado, nem mesmo os chineses que estão aos montes por aqui também (e só "se reproduzem entre eles", segundo o Henrique, pois é, eu disse q ele fala bobagens...rs).
Como vêm, continuo egocêntrica e com uma necessidade enorme de contar tudo de-ta-lha-da-men-te pra vocês. Sinto falta de vocês todos os dias e fico feliz com cada mensagem que chega. As cartas foram as coisas mais lindas que eu podia receber e me deixou mais feliz. Foi como chocolate quente da Copenhagen num dia frio.
Angel, eu vou sempre querer saber de você. Quero saber das suas artes. Dos seus contos. Das suas plantas e dos gatos. Talvez a gnt se torne as velhas dos gatos e tudo bem se isso nos fizer felizes, né? Sei que você tem uma força e que é mto chato ser tão forte as vezes, pq a gnt quer mesmo ter o direito de surtar e pedir colo. Fico feliz de você ter pessoas como a Mirela e a Thaís com você e aí percebo que atingimos o ponto do amor mesmo. Porque não senti ciúmes, como acontece com relações inconstantes, senti uma alegria confortante em saber que há pessoas especiais ao seu lado e torci para que elas possam ser todo o colo que você precisa, enquanto eu não estou aí pra ser parte desse colo também...
Marina, eu admiro tanto a sua lucidez em dizer coisas bonitas sem ser piegas e pensar no amor de forma tão racional, mas ao mesmo se entregar com a loucura dos que amam inconsequentemente. Gosto disso. Quando é que vai ter um cara que vai perceber que a gente é mesmo muito foda e sim, isso é motivo mais que suficiente pra querer fazer qualquer coisa pra ficar com a gente? Bom, na pior das hipóteses, seremos as velhas dos gatos, e dos cachorros também, por que não?
Eu já escrevi demais, sem a beleza da arte da angel, sem o toque de poesia da escrita da marina, mas com todo o amor de quem se sabe feliz, mesmo em momentos tristes, por saber que tem a sorte de encontrar pessoas que me tornam uma pessoa melhor a cada dia!
Amo vocês.
“Não vejo a hora de te encontrar, e continuar aquela conversa, que não terminamos ontem...”

Mirian J 

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

e de repente é a vida que me atropela. 13. não sei se é meu número da sorte ou do azar. da primeira vez foi uma moto. "você nasceu de novo, disseram alguns." da segunda, foi só a vida e suas peças inexplicáveis, foi aquela terça feira modorrenta que veio com coisas que nunca passaram pela minha cabeça e me pegaram no ponto fraco... o pé, não mais quebrado, ainda lateja e me deixa manca. mas a vida me acertou em cheio em cada parte do meu corpo. de cada função vital. o peito que sufoca. o coração que acelera. as pernas que bambeiam. a fala que trava. gagueja quando não deve. o estômago que revira. as bochechas que coram. o sono que se vai. o riso que brota fácil. as lágrimas que transbordam o que não cabe mais só dentro de mim.


sábado, 5 de maio de 2018

Diário de professora

De repente, era tudo novo de novo. O sorriso no rosto não deixava esconder a alegria em estar de volta ao chão da escola e agora, na escola que mais acreditava - a escola pública. Finalmente eu havia chegado exatamente onde devia estar... 

Foi assim que no dia 15 de março minha vida girou 180º e passei a ser novamente a Professora Mirian! Como gosto de ouvir isso... Não sei se por ego, vocação (coisa q não acredito) ou por carência, mas adoro o som: "Professora Mirian". 

Mas nem tudo são sorrisos e músicas para o ouvido na escola, seja ela pública ou privada. Recomeçar, após 4 anos longe da sala de aula foi uma loucura: mudança de rotina, novos desafios, de todos os tipos, e a cabeça a mil pensando em como cativar, como conquistar, como ensinar português, matemática, ciências, história e geografia de forma significativa... O que é significativo para crianças de 9, 10, 11, 12 anos com realidades tão distantes da que eu vivencio? 

Como alfabetizar o menino que há pouco tempo voltou a escutar e não descuidar das outras 27 crianças com diferentes necessidades? Como lidar com a criança que agride a mim, aos colegas e à gestão de forma física e verbal, sabendo que é uma sobrevivente num território de abandono, violências e pobrezas (de todos os tipos)... Dá nó na cabeça e, pior, no coração. 

Sempre "militei", bem entre aspas mesmo, porque nunca me considerei uma militante como acredito que se precisa ser, pelas causas sociais, mas sou aquela militante de internet, que lê, escreve e posta muito no facebook lamentando as desigualdades todas que assolam a sociedade dentro desse capitalismo selvagem... 

Mas agora, cá estou, de frente com a realidade sobre a qual li e escrevi muitas e muitas vezes. Da qual já me exaltei em discussões acaloradas com quem não consegue perceber a realidade para além do próprio umbigo classe média. A percepção do tamanho da impotência sobre estruturas que oprimem me revelaram uma humanidade avassaladora que chega a doer de tão humana. 

Revisitei tanta coisa em mim, da minha formação, das experiências passadas e foi um choque me perceber mais tradicional e conteudista do que imaginava e, então, busco me reconstruir, sem perder o que importa, mas sempre questionando muito sobre o que realmente importa... tenho me atentado à importância da liberdade das crianças, da não vigilância como controle, dos corpos livres, do brincar. A escola pública está me sendo a melhor escola para a busca de uma educação, de fato, libertadora, mas não tem sido nada fácil... . Esse exercício é ora prazeroso, ora bastante doloroso... Difícil romper barreiras tão bem alicerçadas, que a gente descobre não servir pra muita coisa, além do controle... mas tenho seguido tentando, aprendendo mais que ensinando, errando e acertando... 

Foi essa realidade que me fez ver, na prática, a importância do capital cultural para o desenvolvimento integral da criança. A escola, sem uma reforma tributária, sem reforma agrária e com essa desigualdade social escandalosa que assola o país não será a salvação das crianças, como insistem em romantizar alguns, uma vez que a escola sozinha não dá conta de acabar com a opressão, com a miséria, com a violência vivenciada por tantos estudantes nas 19 horas em que não estão na escola. E digo isso de um lugar de privilégio: não posso reclamar do meu salário e benefícios. A sala de aula onde atuo - e todas na escola - tem notebook, data show e rádio. As crianças almoçam ao chegar na escola e tomam lanche no meio do período. Trabalho com professores muito bem qualificados, com formações sólidas, muitos com pós-graduações, mestrados e doutorados e engajados em promover uma educação significativa. Trocamos experiências, ideias e reflexões. Reflexões que nos levam a entender que a escola pode sim ser um instrumento poderoso de mudança social, mas apenas um, diante da necessidade de tantos outros.

Já passei por três escolas particulares. Em nenhuma tive condições de trabalho como as que tenho agora - do salário às condições concretas em sala de aula. Enquanto minhas condições materiais de trabalho mudaram para melhor, inversamente, a condição socioeconômica das crianças são, geralmente, inferiores à das crianças das escolas particulares. Assim, chega-se a óbvia constatação: é a realidade a que são submetidas as crianças nas 19 horas que estão fora da escola que impactam significativamente seu desempenho escolar, não o contrário. 

Assim, compreendi que lutar pela educação só faz sentido se lutarmos por igualdade socioeconômica. Sabe por que a Finlândia é o sucesso que é na educação? Porque lá não tem criança passando fome. As crianças lá vão à escola para estudar, não para, primeiramente, comer, como muitas aqui. Nos EUA, onde a desigualdade também persiste, a educação tem seus graves problemas também. Não adianta frases e discursos sobre o poder transformador da educação se nada for feito nessa sociedade que acredita que riqueza e pobreza estão atreladas à meritocracia. A educação só será democraticamente transformadora quando comer e morar dignamente deixar de ser privilégio, todo o resto é demagogia. 

Apesar disso, continuo com Paulo Freire para quem a educação não muda o mundo, a educação muda as pessoas. Apesar de tantos reveses, é isso que estou tentando fazer: mudar pessoas. 


domingo, 18 de fevereiro de 2018

História Cruzada


Ele só tinha 20 anos. Morto. Assassinado. Não foi assalto. Ele era o que a polícia chamava de “suspeito”. Morador de favela, não teve tempo de pegar sua carteira e apresentar os documentos. Como ‘cidadão suspeito’ não devia ousar colocar as mãos no bolso sem avisar que pegaria a carteira ao ser abordado pelo policial. Isso o tornou ainda mais indigno de qualquer dúvida sobre seu caráter. Sua cor e seu endereço tornavam-no automaticamente um suspeito perigoso. Era estudante e trabalhador, há pouco tempo havia conquistado uma vaga como estagiário num escritório pelas notas altas que o destacaram na turma. Sonhava terminar o curso na faculdade que conseguiu ingressar graças “às esmolas que o governo dava pra essa gente que não se esforça”. Ansiava pelo diploma de advogado para lutar contra as injustiças sociais, como essa que o vitimou fatalmente. 

Enquanto tiros findavam mais um sonho, do outro lado da cidade, onde se tira selfie com a polícia, Matheo, um outro rapaz, também de 20 anos gostava de fumar, só para relaxar e desestressar das cansativas aulas da cara universidade que seus pais bancavam. Com o emprego garantido no escritório do pai, não havia porque se importar com notas altas. Fazia o suficiente. O carro, presente por ter passado no vestibular, fora roubado recentemente e Matheo então comemorou a intervenção federal militar. “É preciso acabar com a farra dos bandidos”, repetia em tom nobre, como o lugar destinado a Matheo desde o berço. Sentia-se aliviado e um pouco mais seguro ao ouvir no noticiário que mais um “bandido” havia sido assassinado: fora Ele, o rapaz sem nome, jovem sonhador, recém-contratado estagiário no escritório do pai de Matheo, mas no jornal do horário nobre, apenas um “suspeito que trocou tiros com a polícia” ainda que estivesse desarmado. 

No país da democracia racial, dos “antagonismos equilibrados” e da meritocracia, evidente que as histórias nada têm a ver com desigualdades raciais e sociais. Além do mais, são só “estórias”, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.

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