Para que serve a utopia?
"A Utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se distanciará dez passos. Quanto mais a procure, menos a encontrarei. Qual sua utilidade, então? A utopia serve para isso, para caminhar!"
Fernando Birri (diretor de cinema)
http://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8
sábado, 28 de maio de 2016
Sobre gênero e cultura do estupro
Talvez eu seja repetitiva. Já escrevi antes sobre o tema aqui, mas infelizmente, pelo cenário que vivemos é sempre bom retomar o assunto. Para começar é importante deixar claro que não há uma “Ideologia de gênero”, a não ser que estejamos tratando da ideologia presente na sociedade: machista, homofóbica e misógina, tendo em vista que tudo é ideologia.
O que tem gerado debates acalorados nos últimos tempos refere-se às “questões de gênero”, estudos científicos que explicam como a concepção do que é ser mulher e do que é ser homem é construída socioculturalmente. De forma simples, para ilustrar isso, basta observar como os papéis socialmente determinados para homens e mulheres são diferentes em diferentes culturas. Como seria se você tivesse nascido na Índia, por exemplo?
A ideia de que há uma ideologia de gênero que pretende ignorar o sexo biológico e incentivar a homossexualidade é de um disparate sem tamanho de parte de grupos religiosos que não sei se por desconhecimento ou canalhice, ignoram como o desenvolvimento humano se dá em sociedade e não apenas por uma estrutura biológica. Além do mais, se fosse a ideologia responsável pela homossexualidade não teríamos homossexuais, uma vez que a ideologia dominante é machista e homofóbica. É loucura pensar que alguém escolheria por esse caminho na sociedade preconceituosa que temos.
Trabalhar questões de gênero nas escolas significa dizer as crianças que o sexo biológico não deve ser um determinante social para as escolhas e atuações sociais. Significa dizer que meninos podem chorar, podem dançar balé, caso desejem, significa dizer a eles que o corpo das meninas é particular e não pode ser tocado sem consentimento, nunca. Não importa a roupa. Não importa o local. Não importa se ela bebeu. É educar para o entendimento de que não é não. Parece óbvio, mas as estatísticas nos mostram que não é.
Trabalhar as questões de gênero significa dizer às meninas que elas podem ser jogadoras de futebol, ser engenheiras e que tarefa doméstica não é sinônimo de trabalho feminino. É educá-las para serem donas do seu corpo e livres para o prazer se assim o quiserem.
É dizer às crianças que homossexualidade é normal, que existem casos na natureza, que sempre existiu na história da humanidade e que essa orientação não faz alguém melhor ou pior que ninguém.
Para mim também é difícil entender porque alguém em nome de Deus, no nosso estado laico, trabalha no sentido de eliminar essa discussão, perpetuando preconceitos que causam vítimas diariamente, como a última barbárie que – pouco – vimos nos noticiários: Jovem estuprada por 30 homens passa por perícia médica. Uma menina – Bia. 30 homens. Uma vingança. Uma monstruosidade. E nenhum, NENHUM repensou e quis parar essa monstruosidade. Essa é a cultura do estupro que denunciamos cotidianamente no feminismo, mas que o machismo reinante busca deslegitimar e, pior, culpabilizar a vítima.
Enquanto isso, Frota, estuprador confesso, em tom de piada, em rede nacional, encontra-se com o novo ministro da educação para propor um ensino sem ideologia, que traduzido em linhas claras nada mais é que manter as ideologias tais como são: machistas, homofóbicas e misóginas.
Opor-se a isso é lutar para que não lamentemos por mais nenhuma Bia.
Publicado originalmente em: Jornal Novo Contexto
Jornal Novo Contexto impresso
segunda-feira, 16 de maio de 2016
Normal é ser diferente
E para completar o dia: Patrícia Abravanel resolve falar o que acha sobre o "homossexualismo". Pra começar, se soubesse um pouco sobre o assunto, saberia que o termo usual atualmente é homossexualidade. Não há homossexualismo* simplesmente porque não há doença em sentir atração sexual pelo mesmo gênero.
Disse a moça: "Eu não sou contra o homossexualismo, mas sou contra falar que é normal."
Ora, o que é normal? Todas as evidências encontradas na natureza selvagem de relações homossexuais, são o que? O que é anormal mesmo é alguém com tão pouco conhecimento sobre gênero ser compartilhada como se fosse uma sábia contemporânea.
Sim, gênero, essa construção social em cima do sexo biológico que nos força a ser como somos. Para quem desconsidera o papel da cultura, faz um exercício e pensa por um minuto como seria se vc tivesse nascido e vivido sob a influência cultural da Índia, por exemplo. Vale ainda assistir ao Enigma de Kaspar Houser. #ficaadica
Anormal para mim é proferir tanta bobagem e achismo em tom de sabedora. Pessoas com possibilidades materiais e intelectuais de romper com o senso comum, mas que parecem se esforçar para parecerem ignorante e, pior, bradar a ignorância em tom de orgulho.
"Eu não sou contra a ignorância, mas sou contra falar que é normal".
* o termo ficou fortemente ligado ao conceito patológico da medicina que só foi retirado em 1990 da lista de distúrbios mentais pela Organização Mundial de Saúde. Portanto, para buscar mudar a visão de pessoas como Patrícia Abravanal, usa-se atualmente o termo homossexualidade, como que para limpar o passado turvo que via nas diferenças uma patologia.
sábado, 14 de maio de 2016
A utilidade do inútil
Copiei o título do livro de Nuccio Ordine, professor de literatura na Universidade de Calábria (Itália) para contrapor a fala do governador Geraldo Alckmin (PSDB) que criticou a Fapesp (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo), principal órgão de financiamento ao desenvolvimento da ciência no Estado, por priorizar estudos – segundo ele – sem utilidade prática. Para Alckmin:
“Gastam dinheiro com pesquisas acadêmicas sem nenhuma utilidade prática para a sociedade. Apoiar a pesquisa para a elaboração da vacina contra a dengue, eles não apoiam. O Butantã sem dinheiro para nada. E a Fapesp quer apoiar projetos de sociologia ou projetos acadêmicos sem nenhuma relevância”
Entretanto, para Nuccio Ordine a prática utilitarista coloca em risco a cultura, a criatividade, as instituições de ensino e ainda os valores fundamentais como a dignidade humana o amor e a verdade. Para o autor “não é verdade – nem mesmo em tempos de crise – que só é útil o que produz lucro ou tem uma finalidade prática. Existem saberes considerados “inúteis” que são indispensáveis para o crescimento da humanidade. Útil, portanto, é tudo aquilo que nos ajuda a termos uma vida mais plena e um mundo melhor.
O absurdo da fala do governador é tamanho que questiono se foi feita por ignorância ou má fé e, pela posição que ocupa, não sei o que seria pior. De repente, é ainda um misto das duas coisas. Estarrecedor.
Ora, o que ele chama de pesquisas “sem utilidade prática para sociedade” são as necessárias pesquisas básicas que, como o próprio nome diz, é a base que fundamenta as descobertas que desenvolver a criatividade, mudam paradigmas, transformam a forma como vemos o mundo e, por fim, acabam por levar a descobertas com a requerida utilidade prática. Imagina se houvessem desconsiderado a teoria da relatividade de Einstein pela exigência de que esta deveria ter uma “utilidade prática”? Sorte de Einstein não depender de financiamento da FAPESP, não?
Para entender a importância da pesquisa básica em “utilidades práticas” é preciso compreender em primeiro lugar que o tempo da ciência não é o mesmo tempo da vida cotidiana. Uma pesquisa, a princípio sem utilidade alguma, após anos de estudos acaba por impulsionar novas pesquisas que impulsionam outras até que se chegue a uma utilidade prática, mas isso pode levar anos, décadas, até séculos.
Os veículos automotores tal qual usamos hoje, por exemplo, têm o sistema de frenagem desenvolvido a partir das descobertas sobre a mecânica baseada no princípio de inércia (1643) de Descartes e Newton e o sistema de combustão desenvolvido a partir das teorias de equilíbrio químico (1789) de Antoine-Laurent Lavoisier que proporcionaram pesquisas sobre a combustão. Na biologia, as famosas ervilhas de Mendel (1865) desenvolveram as leis da hereditariedade que proporcionaram o desenvolvimento da tecnologia em genética e biologia molecular que resultaram na criação de vacinas, medicamentos e terapia gênica, por exemplo.
Ou seja, é de uma ignorância inaceitável que um governador faça uma crítica que não tem razão de ser simplesmente porque pesquisa básica e pesquisa aplicada não são divergentes, mas complementares dentro do sistema de desenvolvimento do conhecimento científico e humano. Conhecimento este que se desenvolve para o bem e para o mal. Não fosse a pesquisa científica, não teríamos a bomba atômica e seu poder altamente destruidor.
Tendo a concordar com Alckmin quando o mesmo diz sobre a não aplicabilidade das pesquisas sociais. Não que as pesquisas não tenham essa tão requerida utilidade prática. Muitas a têm. O que acontece é que, de forma geral, a universidade é o local de vanguarda em que se discute temas que não encontram ressonância em uma sociedade que, por termos políticos como Alckmin, luta para manter o status quo, não aceitando mudanças de paradigmas sociais.
Assim, o governador segue ignorando as pesquisas sobre Educação que mostram evidências que o sistema de bonificação ao professor não resulta em melhoria na qualidade de educação. Ignora as pesquisas que mostram que boa educação se desenvolve com infraestrutura adequada, salas com número reduzido de estudantes, bons salários e formação continuada de qualidade aos docentes. Ao invés disso, segue fazendo a sua “reorganização” em etapas, fechando e superlotando salas. Ou seja, não é que as pesquisas em Ciências Sociais e Humanas não tenham utilidade prática, é que sua utilidade é ignorada por quem tem como interesse deteriorar a educação pública até que o clamor popular seja favorável à privatização do sistema público de ensino.
A fala de Alckmin é mais um, dentro dos diversos ataques que vem sofrendo a Educação: cortes de verbas; salários baixos sem aumento real aos professores; falta de merenda escolar adequada e, agora, essas afirmações que buscam deslegitimar as pesquisas que fazem das universidades um espaço privilegiado de produção do conhecimento humano, e tentam ainda ser a resistência a um sistema que coloca o mercado como redentor de todo mal humano. Mercado responsável pela exploração do trabalhador que não recebe o suficiente para adquirir os bens produzidos por ele.
Não faço aqui uma defesa cega de toda e qualquer pesquisa. Imagino que um levantamento criterioso pode levar a dados que apontem uso de financiamento para pesquisas de fato com pouca relevância, mas quem e como se define o que é relevante? Em 1905, enxergaríamos relevância nas pesquisas de Einstein?
Talvez – hipótese – a não percepção da “utilidade do inútil” esteja apenas nos olhos limitados de quem as observa.
Publicado no Jornal Novo Contexto em 14/05/2016
segunda-feira, 2 de maio de 2016
Dias das mães na escola. Como e por quê?
Dia das mães chegando. Propagandas a todo vapor na TV, rádio, jornais, internet. Mães retratadas com lindas modelos brancas, cabelos longos e magérrimas que deixam uma lágrima escorrer cenograficamente ao elogio seguido do presente da criança mais amorosa do mundo.
Propaganda com famílias ao estilo “comercial de margarina” na maioria esmagadora do marketing feito para vender. Mamãe, papai, dois filhos e um cachorro. Capitalismo é sobre isso: vender.
O problema é quando a escola incorpora também as datas comemorativas no mesmo espírito. Dentro do viés capitalista, se preocupa em oferecer presentes, muitas vezes com solicitação do envio de dinheiro para as mães que acabam por pagar o “presente oferecido” pela escola; as mais tradicionais seguem na linha das lembrancinhas confeccionadas artesanalmente que, na educação infantil, na maioria das vezes, acaba por sobrecarregar as professoras e professores porque exigem uma perfeição diferente da perspectiva das crianças pequenas. O que as mães acabam ganhando é uma lembrancinha realizada a horas de sonos perdidas pelas professoras das crianças.
Para além do viés capitalista, a escola ainda reproduz esse sistema de valores que considera como família apenas pai, mãe e filhos, ignorando que 50,6% das famílias brasileiras são compostas das mais diversas maneiras e não no perfil “comercial de margarina”. É uma violência simbólica para uma criança que não tem mãe ficar trabalhando durante uma semana um tema que, da forma como é tratado, pouco, para não dizer nada, tem de pedagógico. As professoras bem-intencionadas vêm ao socorro e dizem: faz para quem cuida de você. Então para que dia das mães na escola?
É inadmissível que em pleno século XXI as escolas não se valham destas datas para levantar e problematizar questões contemporâneas. Há em curso na câmara dos deputados a votação da lei que define família exclusivamente como a união conjugal formada entre o homem e a mulher. Ignora-se com essa lei os dados levantados pelo IBGE que incluem as mais diversas formações familiares que representam nossa sociedade tal como é contemporaneamente. Ignora-se os 16,2% de famílias formadas por mulheres com filhos com ou sem parentes; os 2,4% de famílias formadas por homens na mesma situação. As famílias com dois pais ou duas mães. Se a lei for aprovada essas e todas as demais formações familiares podem enfrentar problemas na busca por direitos como plano familiar de saúde, por exemplo.
Aquela mulher abandonada pelo pai biológico não será considerada família junto ao seu filho e, portanto, ele não terá direito ao plano de saúde da mãe. No entanto, a escola ao invés de levantar esses debates, continua no seu lugar de obediência ao status quo de apenas reproduzir comportamentos que excluem uma parcela significativa da sociedade. Ignora possibilidades riquíssimas de trabalhos pedagógicos. Por que não falar de gênero? Sim, porque no dia das mães, a quem sobra a tarefa de lavar a louça depois da festa de homenagem a ela? Por que cabe às mães a tarefa de tripla jornada?
Em tempos obscuros como o que vivemos, o óbvio precisa ser dito: não sou avessa ao dia das mães, muito pelo contrário, mas sei que a comemoração desta cabe ao âmbito familiar. O que levanto aqui é sobre qual o papel da escola ao trabalhar datas comemorativas como essa e tantas outras que causam mais transtornos que aprendizagem aos estudantes.
Lógico que é também papel da escola tratar de questões culturais construídas ao longo da história pela humanidade, mas sabendo que o currículo não é neutro, vale sempre questionar por que a escolha de algumas datas em detrimento de outras. Questiono também as metodologias para o trabalho das datas; mais problemática que as comemorações são as formas escolhidas para fazê-las. Não é estranho que as escolas comemorem mais o dia das mães ou dos pais que o dos professores?
Aos que defenderão a data pela possibilidade da aproximação entre família e escola, respondo prontamente que esta deve acontecer pela construção de espaços, como os conselhos de escola, que sejam de fato participativos. Espaços em que as famílias possam compreender as escolhas pedagógicas e participar na construção dos currículos a serem desenvolvidos.
Uma boa forma da escola homenagear as mães, sem deixar de lado sua tarefa pedagógica, é fazer do seu trabalho um instrumento de reflexão que auxilie a romper com atitudes que ainda hoje deixam as mães sobrecarregadas nas suas triplas jornadas dentro de uma estrutura machista que faz das mães Cinderela no segundo domingo de maio, mas que no dia-a-dia trata-a como a serva que deve ser bela, recatada e do lar.
Texto publicado originalmente em 29/04 em Jornal Novo Contexto on line e Novo contexto impresso
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