Para que serve a utopia?

"A Utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se distanciará dez passos. Quanto mais a procure, menos a encontrarei. Qual sua utilidade, então? A utopia serve para isso, para caminhar!"
Fernando Birri (diretor de cinema)
http://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8

sábado, 14 de maio de 2016

A utilidade do inútil



Copiei o título do livro de Nuccio Ordine, professor de literatura na Universidade de Calábria (Itália) para contrapor a fala do governador Geraldo Alckmin (PSDB) que criticou a Fapesp (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo), principal órgão de financiamento ao desenvolvimento da ciência no Estado, por priorizar estudos – segundo ele – sem utilidade prática. Para Alckmin:

“Gastam dinheiro com pesquisas acadêmicas sem nenhuma utilidade prática para a sociedade. Apoiar a pesquisa para a elaboração da vacina contra a dengue, eles não apoiam. O Butantã sem dinheiro para nada. E a Fapesp quer apoiar projetos de sociologia ou projetos acadêmicos sem nenhuma relevância”

Entretanto, para Nuccio Ordine a prática utilitarista coloca em risco a cultura, a criatividade, as instituições de ensino e ainda os valores fundamentais como a dignidade humana o amor e a verdade. Para o autor “não é verdade – nem mesmo em tempos de crise – que só é útil o que produz lucro ou tem uma finalidade prática. Existem saberes considerados “inúteis” que são indispensáveis para o crescimento da humanidade. Útil, portanto, é tudo aquilo que nos ajuda a termos uma vida mais plena e um mundo melhor.

O absurdo da fala do governador é tamanho que questiono se foi feita por ignorância ou má fé e, pela posição que ocupa, não sei o que seria pior. De repente, é ainda um misto das duas coisas. Estarrecedor.

Ora, o que ele chama de pesquisas “sem utilidade prática para sociedade” são as necessárias pesquisas básicas que, como o próprio nome diz, é a base que fundamenta as descobertas que desenvolver a criatividade, mudam paradigmas, transformam a forma como vemos o mundo e, por fim, acabam por levar a descobertas com a requerida utilidade prática. Imagina se houvessem desconsiderado a teoria da relatividade de Einstein pela exigência de que esta deveria ter uma “utilidade prática”? Sorte de Einstein não depender de financiamento da FAPESP, não?

Para entender a importância da pesquisa básica em “utilidades práticas” é preciso compreender em primeiro lugar que o tempo da ciência não é o mesmo tempo da vida cotidiana. Uma pesquisa, a princípio sem utilidade alguma, após anos de estudos acaba por impulsionar novas pesquisas que impulsionam outras até que se chegue a uma utilidade prática, mas isso pode levar anos, décadas, até séculos.

Os veículos automotores tal qual usamos hoje, por exemplo, têm o sistema de frenagem desenvolvido a partir das descobertas sobre a mecânica baseada no princípio de inércia (1643) de Descartes e Newton e o sistema de combustão desenvolvido a partir das teorias de equilíbrio químico (1789) de Antoine-Laurent Lavoisier que proporcionaram pesquisas sobre a combustão. Na biologia, as famosas ervilhas de Mendel (1865) desenvolveram as leis da hereditariedade que proporcionaram o desenvolvimento da tecnologia em genética e biologia molecular que resultaram na criação de vacinas, medicamentos e terapia gênica, por exemplo.

Ou seja, é de uma ignorância inaceitável que um governador faça uma crítica que não tem razão de ser simplesmente porque pesquisa básica e pesquisa aplicada não são divergentes, mas complementares dentro do sistema de desenvolvimento do conhecimento científico e humano. Conhecimento este que se desenvolve para o bem e para o mal. Não fosse a pesquisa científica, não teríamos a bomba atômica e seu poder altamente destruidor.

Tendo a concordar com Alckmin quando o mesmo diz sobre a não aplicabilidade das pesquisas sociais. Não que as pesquisas não tenham essa tão requerida utilidade prática. Muitas a têm. O que acontece é que, de forma geral, a universidade é o local de vanguarda em que se discute temas que não encontram ressonância em uma sociedade que, por termos políticos como Alckmin, luta para manter o status quo, não aceitando mudanças de paradigmas sociais.

Assim, o governador segue ignorando as pesquisas sobre Educação que mostram evidências que o sistema de bonificação ao professor não resulta em melhoria na qualidade de educação. Ignora as pesquisas que mostram que boa educação se desenvolve com infraestrutura adequada, salas com número reduzido de estudantes, bons salários e formação continuada de qualidade aos docentes. Ao invés disso, segue fazendo a sua “reorganização” em etapas, fechando e superlotando salas. Ou seja, não é que as pesquisas em Ciências Sociais e Humanas não tenham utilidade prática, é que sua utilidade é ignorada por quem tem como interesse deteriorar a educação pública até que o clamor popular seja favorável à privatização do sistema público de ensino.

A fala de Alckmin é mais um, dentro dos diversos ataques que vem sofrendo a Educação: cortes de verbas; salários baixos sem aumento real aos professores; falta de merenda escolar adequada e, agora, essas afirmações que buscam deslegitimar as pesquisas que fazem das universidades um espaço privilegiado de produção do conhecimento humano, e tentam ainda ser a resistência a um sistema que coloca o mercado como redentor de todo mal humano. Mercado responsável pela exploração do trabalhador que não recebe o suficiente para adquirir os bens produzidos por ele.

Não faço aqui uma defesa cega de toda e qualquer pesquisa. Imagino que um levantamento criterioso pode levar a dados que apontem uso de financiamento para pesquisas de fato com pouca relevância, mas quem e como se define o que é relevante? Em 1905, enxergaríamos relevância nas pesquisas de Einstein?

Talvez – hipótese – a não percepção da “utilidade do inútil” esteja apenas nos olhos limitados de quem as observa.


Publicado no Jornal Novo Contexto em 14/05/2016

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